É impressionante como o mercado do vinho, apesar dos 8.000 anos de história da bebida, é vulnerável a uma piadinha. Hoje, 20 anos depois do lançamento do filme “Sideways – Entre umas e Outras“, que conta a história de uma road trip de dois amigos pelos vinhedos da Califórnia, analistas comentam o estrago que o filme fez à uva merlot, então uma das queridinhas dos EUA, em favor da pinot noir. As vendas da primeira naufragaram enquanto a segunda virou febre mundial.
O contexto: à certa altura do filme, o protagonista Miles (Paul Giamatti) declara, raivoso, que “se alguém pedir merlot, eu vou embora!”. Dotado de uma profundidade que só os deprimidos parecem ter, ele faz uma ode à pinot noir, dizendo como ela é difícil, rebelde e precisa de cuidados (assim como ele…). Verdade que ele também fala algumas groselhas, como a de que a uva só cresce em lugares muito específicos. Hoje, temos no mercado pinot noir do norte da Alemanha ao sul da Argentina.
Nesta semana, vídeos sobre o filme lotaram minha caixa do Instagram e meu WhatsApp, depois que Alexander Payne, roteirista e diretor de “Sideways”, declarou ao Hollywood Reporter que “era apenas uma piada, uma única fala em um filme. Quem poderia prever isso tudo?”.
Realmente, foi bem louco. Especialmente porque havia outras piadas. Miles também menospreza uvas como a cabernet franc (da qual “não se pode esperar grandiosidade”) e a cabernet sauvignon (“prosaica”), embora depois elogie rótulos feitos com essas castas. A garrafa que o protagonista idolatra, guardada para uma comemoração especial, é um Château Cheval Blanc 1961, um Bordeaux feito exatamente com cabernet franc e… merlot.
Reassisti ao longa nesta semana e pensei em duas coisas. A primeira delas é que, quando o filme foi lançado, ainda estávamos sob a égide de Robert Parker, o principal crítico do mundo do vinho então, conhecido por seu gosto por vinhos mais potentes ao estilo de Bordeaux, terra natal da merlot, e por sua rixa com a Borgonha, berço da pinot noir. Era só uma piada, mas poderia ser um grito revolucionário contra o efeito Parker. Era um assunto na época, afinal, naquele mesmo ano saiu o documentário “Mondovino”, de Jonathan Nossiter, que analisava o perigoso poder de influência do crítico norte-americano.
Por fim, me espantei com a chatice do protagonista. O que é esse negócio de tampar o ouvido para degustar? Lembro de ter amado o filme da primeira vez que o vi e ainda dei boas risadas nesta semana. Mas não sem me chocar com o nosso anti-herói deprimido palestrando sobre os vinhos de forma esnobe o tem-po-to-do. Serviu como alerta. Agendei meu exame de consciência e já peço perdão a qualquer amigo que eu tenha torturado nos últimos anos. Como pedido de desculpas, sem preconceitos, ergo minha taça de pinot —ou de merlot.
Vai uma taça?
Outro dia tomei um merlot fantástico, muito aveludado, o Gran Tomero Single Vineyard Merlot 2020 (R$ 149, no Empórium São Paulo), intenso e concentrado. Outro mais moderno e versátil é o Riveras del Chillian Merlot (R$ 99, na Degusti), delicioso. Se você é da turma da pinot noir, sugiro o argentino Trapezio (R$ 49 na Toque de Vinho). Se pode gastar um pouco mais, vá de Cave de Ribeauvillé Pinot Noir Saint-Hippolyte 2021 (R$ 191 na Chez France).omplexa.
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