O sexto andar do hotel São Francisco oferece uma vista privilegiada de uma das cidades mais antigas do Brasil, Penedo. Da sacada dos apartamentos voltados para o rio que dá nome à estalagem, o visitante lança seu olhar sobre o casario histórico que ainda resiste à força do tempo. Torres de igrejas e sobrados seculares destacam-se na paisagem, cortada por ruas de pedra e paralelepípedo, onde as praças parecem ir ao encontro da correnteza. Na divisa entre Alagoas e Sergipe, o vaivém de gente que atravessa o curso de água em balsas ou em singelos barquinhos coloridos dá um certo movimento à imagem.
Muita coisa ali se deve ao trajeto criado pelo rio, homenageado em diferentes pontos da cidade. A força do São Francisco segue com ele desde a sua nascente histórica nas montanhas do Parque Nacional da Serra da Canastra, em Minas Gerais, até a sua foz, que fica mais ou menos 40 quilômetros distante de Penedo.
Ingrediente indispensável na composição desse cartão-postal, o rio é fonte não só de beleza. O próprio nascimento de Penedo se deve ao São Francisco. Graças à sua localização estratégica, tornou-se o principal caminho para as grandes navegações, uma espécie de porta de entrada para os sertões Brasil adentro.
A fundação da vila que antecede à cidade data do início da colonização, de 1560 a 1565. Entre séculos, portugueses, holandeses e franceses foram deixando suas marcas, sobretudo as registradas na arquitetura barroca local, representada em conventos, igrejas e casarios.
A vida urbana começava a se desenvolver às margens do rio, que até então era marco dos limites ao sul da capitania de Pernambuco, região que sediaria, dois séculos mais tarde, o que hoje conhecemos como Alagoas.
É no pequenino e charmoso centro histórico que Penedo tenta preservar seu acervo arquitetônico, um lugar convidativo a ser percorrido a pé. A cidade entrou na rota de municípios visitados pelos pesquisadores do Datafolha. Todos os anos, o instituto sorteia uma série de localidades para aplicar a pesquisa Folha Top of Mind, a maior sobre lembrança de marcas da América Latina.
No roteiro dos entrevistadores, há a presença de metrópoles como São Paulo, Rio e Belo Horizonte, mas também a inclusão de povoamentos como Leopoldo de Bulhões, em Goiás, com apenas 9.035 habitantes —menor município estudado pelo instituto. Com pouco mais de 60 mil moradores, a alagoana Penedo tem o seu sítio histórico tombado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Colonial, ela nos remete a outras cidades históricas erguidas no período. Pense em Olinda (PE), só que tire o mar e bote o rio. Imagine uma Ouro Preto nordestina, sem serra, mas com o Velho Chico a contorná-la. Todavia, Penedo tem identidade própria que dispensa comparações.
Primeiramente, foi o rio (sempre ele) que deu nome ao povoado: Vila de São Francisco. Desde os primórdios, o lugar teve como principal atividade econômica a açucareira, o que favoreceu a construção de importantes edifícios e capelas —a cana segue forte.
Em 1637, a região sofreu invasão de tropas holandesas lideradas por Maurício de Nassau, para garantir a exclusividade do acesso ao continente brasileiro pelo São Francisco. Sendo assim, a vila só voltaria ao domínio português oito anos depois, chamada, então, de Vila do Penedo do Rio São Francisco. Em 1842, é elevada à categoria de cidade. A partir daí, passa a ter seu nome simplesmente intitulado Penedo.
Com o tempo, o centro histórico foi ganhando novas edificações. Projetado pelo italiano Luigi Lucarini, principal arquiteto atuando em Alagoas no final do século 19, o Theatro Sete de Setembro chegou a abrigar grandes companhias teatrais, atraídas por um espaço bem projetado e de acústica impecável.
De estilo neoclássico, com frontão triangular, seu interior apresenta planta em forma de ferradura, próprio da arquitetura italiana. De 1884, serviu ainda como cinema e cenário de bailes carnavalescos. No andar superior, as janelas de pé-direito alto permitem espiar a vida lá fora. É um aprazível e importante espaço cultural da cidade.
Na área central, prédios modernistas como o do próprio hotel São Francisco, do início dos anos 1960, entremeiam-se aos coloniais. Quem vive ali se queixa de falta de produtos e precariedade de serviços. Para Vera Lúcia Alves, de 66 anos, nascida em Porto Calvo, litoral norte alagoano, há 28 anos em Penedo, o comércio local ainda é fraco.
“Falta uma boa loja de sapatos, outra de tecidos. Uma de presentes”, diz ela. “Se for fazer uma compra mais elaborada, para as festas de fim do ano, por exemplo, vai precisar comprar em outra cidade.” Por outro lado, traduz em elogios quando o assunto é turismo, apesar de o fluxo andar desequilibrado ao longo do ano. “O município precisa mais de vitrine, de exposição”, afirma.
Toca o restaurante Maurício de Nassau ao lado do marido, Gustavo Lisboa, 74, nativo de Penedo. O espaço tem suas janelas voltadas para o Mirante da Rocheira, com o São Francisco ao fundo, ambiente convidativo para apreciar a vista do Velho Chico e de suas ilhas, sobretudo no pôr do sol.
Apesar da diversidade de atrativos culturais, naturais e da receptividade de seu povo, basta uma imersão de fim de semana em Penedo para se dar conta de que existe ali potencial a ser lapidado. Para quem gosta de história, a Igreja Nossa Senhora da Corrente, de 1729, exibe em seu interior um conjunto de decoração em azulejo lusitano, com forro de linha ilusionista e piso de mosaico inglês. Repare no retábulo do altar-mor, todo trabalhado e folheado a ouro. Janelas e púlpitos são em estilo rococó. Lá de dentro, observa-se a paisagem cotidiana do São Francisco à frente.
Fundado em 1661, o Convento e Igreja Santa Maria dos Anjos possui adornos em pedra e figuras humanas atarracadas. Numa criativa fantasia barroca, o exterior do convento é sóbrio, seguindo a linha das demais casas franciscanas do Brasil.
O interior tem talha do século 18, em estilo rococó. Se for escolher um único lugar religioso para visitar, vá nesse. No século 17, o piso do templo era assoalhado em madeira, em formato de caixotes. Por baixo deles, ficava o ossário. Naqueles tempos, ainda não se usavam bancos para a veneração de fiéis. De acordo com as posses dos frequentadores, cada um se sentava em suas esteiras ou em seus tapetes persas. A imagem de Nossa Senhora não tem o olhar fixo para o céu, como se vê em outras da Virgem. É voltado para o lado.
Outro templo tombado pelo patrimônio é a Igreja de São Gonçalo Garcia, também no centro. A capela primitiva foi construída por ermitões. A atual começou a ser erguida em 1758, quando a irmandade foi organizada. Acolhe uma das imagens de Jesus mais antigas de Penedo que, até 1726, era cultuada em um nicho existente na antiga rua da Praia —de rio.
Por muitos anos, ela foi afastada da veneração pública. Acreditava-se que, por apresentar “imperfeições e deformidades”, repleta de “chagas vivas” e ”olhos irregulares”, a imagem causava pavor, notadamente em crianças, segundo contam moradores mais antigos. Por causa disso, era exposta apenas na tradicional procissão do Fogaréu, em meio a archotes e a velas acesas. Um escultor retirou-lhe os traços antigos, dando-lhe, assim, a derradeira feição harmoniosa.
A cerca de 150 quilômetros de distância da capital, Maceió, e a 120 quilômetros de Aracaju, Penedo também é o caminho para desbravar a foz do rio São Francisco.
A dica é seguir para a cidade vizinha de Piaçabuçu, a menos de 30 quilômetros. É de lá que partem passeios em direção aos chamados Lençóis Alagoanos, uma região de lagoas formadas pela água da chuva que ficam no meio de dunas. Aí é só seguir para ver o encontro do rio com o mar. Boa parte dos turistas que fazem esse passeio sai de Penedo.
Nascido e criado ali, Sávio Lazaro, de 28 anos, músico e garçom, conta que vem aumentando o número de visitantes nos últimos dois anos. “Mas não adianta ter uma linda história, como temos, se as pessoas não a conhecem”, observa. “Precisava de um canal de comunicação que conectasse a cidade ao mundo. Seria importante, por exemplo, um Wi-Fi liberado em praças, o que nos ajudaria a nos conectar com outros universos.” Segue o rapaz: “Bens de consumo? Tudo chega, pois, nos primórdios do Brasil, foi exatamente aqui que o país se abriu para o consumo durante a colonização”.
Nem tudo, é claro, se resume à oferta nas prateleiras. Quem não acha o que procura e pode se dar ao luxo de buscar em outra cidade, assim o faz. É o caso de Francisca Lima Lessa Lobo, de 71 anos. Engenheira agrônoma aposentada, aprendeu a bordar aos sete anos com a mãe. Hoje, é bordadeira profissional
e ensina o ofício a um grupo de 32 mulheres da associação Pontos e Contos.
Acostumada a rodar pelo sertão, elogia a qualidade de vida de Penedo. “É um lugar tranquilo. Não tem engarrafamento. Fica perto de importantes capitais”, elogia, mas sem relegar os problemas. “A saúde aqui é precária. Falta consciência e educação também, independentemente da origem social das pessoas. É muito triste ver as margens do rio repleta de plástico.”
Pode tornar-se ainda mais desagradável quando a gente descobre que o São Francisco recebe esgoto direto. Tanto pela qualidade de serviços quanto pelo acesso a bens e produtos, a pesquisa Datafolha também funciona como uma espécie de termômetro, que pode ajudar empresas e governos a melhorarem a vida de quem vive ou visita Penedo.
Afinal, das Minas Gerais até o encontro com a imensidão do Atlântico, o rio São Francisco não tem, em todo o seu curso que passa por cinco estados brasileiros, cidade tão charmosa quanto Penedo. É um relicário da nossa história.
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