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Citado por Xi, Machado comentou relações de Brasil e China – 07/12/2024 – Ilustríssima


[RESUMO] Menção de Xi Jinping, dirigente chinês, a Machado de Assis em artigo publicado na Folha ressalta aspecto pouco conhecido do escritor brasileiro: seu aguçado interesse pela China. Além de traduzir poemas de autores chineses, o escritor abordou em uma série de crônicas, com a ironia de costume, os debates em voga sobre uma eventual substituição da mão de obra africana escravizada por trabalhadores livres, mas também explorados, da China. Conjunto de textos critica a permanência do racismo e as teorias fajutas utilizadas para justificá-lo.

“Tudo está na China.”

A frase abre uma crônica de Machado de Assis publicada no Rio de Janeiro há 130 anos, mais exatamente em abril de 1894. Com a irreverência de praxe, o cronista diz que tudo o que se inventa no Ocidente existe na China há muitos séculos: o socialismo, o telefone, o velocípede, o bonde. Em outras crônicas, sugere a precedência na invenção da imprensa e até da arte dentária e sentencia que, na China, “existe tudo, e o que não existe, é porque já existiu”.

Os comentários vieram à memória a propósito da referência a Machado que o dirigente da China, Xi Jinping, fez em texto publicado na Folha em 17 de novembro: “O fato de que Cecília Meireles e Machado de Assis, ambos poetas e escritores brasileiros bem conhecidos, traduziram poemas da dinastia chinesa Tang reflete uma sinfonia mental entre os dois lados [China e Brasil] que transcende tempo e espaço”.

Não é todo dia que uma figura política com esse destaque faz menção a escritores brasileiros e a aspectos de suas obras pouquíssimo conhecidos até mesmo por aqui.

Cecília Meireles traduziu cerca de 70 poemas de Li Po e Tu Fu, dois dos autores mais conhecidos da dinastia Tang, que se estendeu de 618 a 907. Eles foram publicados postumamente no volume “Poemas Chineses”.

Já Machado traduziu a surpreendente “Lira Chinesa”, composta de oito poemas curtos, de sete autores ainda não inteiramente identificados. Sabe-se que ele os pôs em português e em verso a partir de uma tradução para o francês.

Saíram no seu segundo livro de poesias, “Falenas”, de 1870, que reúne em um mesmo volume temas e formas da Antiguidade greco-romana, a tradição lusitana, referências francesas, alemãs, espanholas e inglesas e ainda trazem de quebra a refinadíssima lírica chinesa. Machado tinha 31 anos e estava ainda a uma década da publicação das “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.

O primeiro poema da “Lira”, “Coração Triste Falando ao Sol”, apresenta-se como imitação de Su-Tchon e trata da perda amorosa, tão certa como a sucessão das estações e a passagem do tempo: “No arvoredo sussurra o vendaval do outono,/ Deita as folhas à terra, onde não há florir/ E eu contemplo sem pena esse triste abandono;/ Só eu as vi nascer, vejo-as só eu cair”.

A delicadeza dos versos imitados da poesia chinesa punha o autor em uma posição muito singular, destoante do que se praticava no Brasil do seu tempo. Um tanto tardia em relação ao chamado orientalismo romântico, um tanto precoce no recurso à paródia e à nota irônica que se ouviria com mais frequência com as vanguardas modernistas.

A ironia soa mais forte no terceiro e brevíssimo poema do conjunto, “O Poeta a Rir”, atribuído a Han-Tiê. Aqui não são as invenções humanas que servilmente imitam a natureza, mas esta que decalca as invenções humanas:

“Taça d’água parece o lago ameno;

Têm os bambus a forma de cabanas,

Que as árvores em flor, mais altas, cobrem

Com verdejantes tetos.


As pontiagudas rochas entre flores,

Dos pagodes o grave aspecto ostentam…

Faz-me rir ver-te assim, ó natureza,

Cópia servil dos homens”.

Mas será na prosa tardia que Machado vai dedicar maior atenção à China. Com interesse aguçado pelas questões geopolíticas, entre 1894 e 1895, acompanhou em suas crônicas a guerra entre China e Japão. Mas o que de fato chamou sua atenção, como cronista, foi a substituição da mão de obra de africanos escravizados e seus descendentes por imigrantes livres, o que a certa altura incluía a possibilidade da vinda de trabalhadores chineses, então referidos como “chins”.

Rodrigo Pereira, em dissertação de mestrado defendida na USP em 2009, mostra em detalhes como Machado acompanhou atentamente as discussões sobre a substituição da força de trabalho diante da iminência da Abolição. O debate agitou o Parlamento brasileiro a partir do início da década de 1870 e foi se acirrando ao longo da década de 1880, quando levas cada vez maiores de imigrantes europeus começavam a desembarcar no país.

Utilizando o recurso de atribuir a autoria do texto a um terceiro (como faz em “Brás Cubas” e “Dom Casmurro”), Machado criticava o pensamento e os discursos dominantes para quem pudesse ler e quisesse entender.

As ideias correntes eram uma combinação de teorias científicas fajutas amplamente utilizadas para justificar a exploração máxima a um custo mínimo, tendo como substrato o racismo, que nessa ocasião variou de alvo e de cor, do preto para o amarelo.

Em uma crônica de 23 de outubro de 1883, reproduz um ofício que teria sido enviado pelo vice-rei da Índia ao conde de Granville, político britânico e secretário de Estado das colônias. Eis as palavras do vice-rei:

“Em primeiro lugar, devo lembrar a V. Excia. que é preciso distinguir o chim do chim. O chim comum está de há muito abandonado em toda a Ásia, onde foi suplantado por uma variedade de chim, muito superior à outra. Essa variedade, como já tive ocasião de dizer ao governo de Sua Majestade, é o chim-panzé.


O deplorável equívoco que, durante dilatados anos, classificou o chim-panzé entre os macacos, estava já há muito abandonado. Mas persistia a convicção de que, embora pertencente à família humana, o chim-panzé fosse refratário ao trabalho. Esta mesma convicção vai desaparecer, depois das brilhantes experiências feitas nos domínios de Sua Majestade, e até na China e no Japão”.

Nessa crônica, o leitor atento reconhecerá uma mistura de evolucionismo de quinta categoria com uma horrenda hierarquização racial, dois sustentáculos da empresa colonial. No subtexto, sugere-se o status sub-humano e o tratamento que estariam reservados aos chineses, caso viessem substituir a mão de obra africana escravizada, algo naquela altura desejado e defendido por muitos fazendeiros escravocratas.

O mesmo assunto já ocupara a crônica da semana anterior, a de 16 de outubro de 1883, que certamente está entre os textos mais amalucados escritos por Machado de Assis. Nele, o cronista reproduz a carta em “chinês” que o mandarim Tong Kong Sing, em visita ao Brasil, teria enviado a Lélio, pseudônimo utilizado por Machado nessas crônicas:

“Ton-ton pacamré rua do Ouvidor nappi Botafogo, nappi Laranjeiras, nappi Petrópolis gogô. China cava miraka rua do Ouvidor! Naka ling! tica milung! Ita marica armarinho, gavamacú moça bonita, vala ravala balcão; caixeiro sika maripú derretido. Moçanigú vaia peça fita, agulha, veludo, colchete, iva cuca trapalhada”.

No entrelaçamento de palavras em português com outras que remetem ao chinês e a línguas africanas, incluindo pitadas de latim, o cronista relaciona mão de obra africana, mão de obra chinesa e progresso. Para muitos, incluindo o autor da “Lira Chinesa”, o que de fato estava em jogo era uma nova forma de degradação do trabalho, do escravizado para o semiescravizado.

A arenga extravagante continua:

“Xulica Brasil pará; aba lingú retórica, palração, tempo perdido, pari mamma; xulica kurimantú. Iva nenê, iva tatá. Brasil gamelatika moka, inglês ver. Veriman? Calunga, mussanga, monau denguê. Vala-vala. Dara dara bastonara. Malan drice pakú. Ocuôco; momoréo-diarê. Ite, missa est”.

E, ao final, arremata Lélio, pseudônimo de Machado:

“Como se terá visto, no meio de alguns reparos crus, há muita simpatia e viva observação. Quanto ao estilo, é do mais puro, é da escola de Macau, fiel às doutrinas do século 12º antes da Criação. A nossa crítica terá notado a linda imagem com que o ilustre escritor define o progresso, chegando à praia da Copacabana: pacatú, pacatú, pacatú. Em suma, é um documento honroso para o autor e para nós”.

A imagem do progresso chegando a Copacabana a passos lentos, sugeridos pelo “pacatú, pacatú, pacatú”, ainda pode render um compêndio de história do Brasil e um tratado de geopolítica.

Voltando à crônica de 1894, em que dizia que tudo está na China, Machado afirma em latim que, no fundo, quem tem razão é o Eclesiastes, sacando uma de suas citações favoritas: “Nihil sub sole novum”, ou nada é novo debaixo do sol.



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