A Organização para a Libertação do Levante (HTS, na sigla em árabe), coalizão rebelde que tomou Damasco, já administrava desde 2017 a província de Idlib, no norte da Síria, e relatos apontam que as promessas atuais do líder do grupo, Abu Mohamed al-Golani, de respeito a minorias religiosas e mais liberdade em todo o país, estiveram distantes da realidade na região.
Uma Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre a República Árabe Síria apresentou em fevereiro de 2022 ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas um relatório sobre o país.
Além das atrocidades do regime de Assad, os investigadores da comissão se debruçaram sobre a gestão do Governo de Salvação, como é chamada a administração do HTS em Idlib. As conclusões foram bastante desanimadoras para o futuro da Síria.
Segundo o relatório, o Governo de Salvação manteve o “padrão de detenção arbitrária de supostos oponentes políticos e profissionais da imprensa” do resto do país.
Ativistas e profissionais de imprensa foram detidos e o canal de televisão Orient News TV foi suspenso em agosto de 2021 por quase um mês porque o HTS “discordou de como o canal retratou o grupo e outras facções”.
De acordo com a comissão, a vida privada de cidadãos de Idlib também foi visada pela repressão do Governo de Salvação.
“Pessoas foram detidas após comentários feitos em conversas privadas referentes ao custo de vida ou questões religiosas. Esses comentários foram qualificados como calúnia e blasfêmia, com a segunda acusação levando a sentenças de um ano de prisão”, informaram os investigadores da ONU.
O estudo descreveu que um órgão chamado Al-Falah (antes Hisbah) era encarregado de policiar o cumprimento das regras de comportamento social e código de vestimenta impostas pelo HTS, e prendeu mulheres por estarem vestidas “inadequadamente” e por não cumprimento de “proibições relacionadas ao entretenimento” – acessaram conteúdos culturais vetados pelos rebeldes sírios.
A repressão do HTS chegou à Justiça, já que presos pelo Governo de Salvação tiveram acesso negado a advogados e sentenças de morte foram emitidas em alguns casos. Ainda de acordo com o relatório, ex-detidos descreveram que crianças, incluindo órfãs, eram mantidas em prisões junto de adultos. Também houve relatos de tortura e violência sexual em presídios.
“Por exemplo, uma mulher entrevistada recentemente descreveu os meses que passou detida em Idlib entre 2018 e 2019, durante os quais foi submetida a humilhação e violência sexual. Ela explicou como foi forçada a se despir completamente durante sessões de interrogatório que ocorreram na presença de vários homens, e autorizada a vestir uma peça de roupa cada vez que respondia a uma pergunta”, escreveu a comissão.
“Familiares enfrentaram dificuldades para descobrir o paradeiro de detidos e, em vários casos, os detidos ilegalmente mantidos foram libertados apenas após pressão de atores influentes ou da imprensa”, acrescentaram os investigadores.
O estudo também descreveu que era comum o confisco de propriedades de cidadãos de Idlib, geralmente destinadas para membros ou familiares de integrantes do HTS. “As propriedades de grupos minoritários, como os cristãos, foram especificamente visadas”, apontou.
“Você não se torna democrático em uma semana”, diz especialista em Síria
Não se sabe quanto dessa realidade mudou desde 2022 e se o HTS está realmente disposto a cumprir suas promessas de abertura política e religiosa. Especialistas em Síria ouvidos pelo jornal americano The New York Times relataram que nos últimos anos houve embates entre a ala moderada e a linha dura do HTS, e que esta estaria perdendo espaço.
Orwa Ajjoub, pesquisador da Universidade de Malmö, na Suécia, citou um exemplo: fundamentalistas do grupo rebelde se opuseram a um novo shopping center onde a circulação simultânea de homens e mulheres era permitida, mas mesmo assim o empreendimento continuou funcionando desta forma.
Em geral, argumentaram os especialistas, a repressão do HTS não se compara à que grupos mais radicais como o Estado Islâmico promovem nos territórios que controlam, mas o New York Times destacou as denúncias de prisões de opositores e condições críticas nas prisões de Idlib, além de medidas como separação de escolas por sexo.
Dessa forma, após a queda de Assad, não há muita esperança de que uma democracia ao estilo ocidental surja na Síria – ao menos não no curto prazo, afirmou Jerome Drevon, pesquisador do think tank International Crisis Group, sediado em Bruxelas, à CNN.
“Você não pode esperar que um grupo armado em guerra controlando uma região muito pequena crie um sistema social-democrata”, argumentou. “A Síria não tem democracia há cinco, seis décadas. Você não se torna democrático em uma semana.”
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