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Conheça o tradicional Carnaval de Podence, em Portugal – 08/03/2025 – Turismo


O Carnaval mais tradicional de Portugal, declarado patrimônio cultural imaterial da humanidade pela Unesco, acontece numa aldeia da qual os moradores estão indo embora.

Próxima à cidade de Bragança, Podence tem cerca de 200 habitantes –há 20 anos, eram 400. Como em muitas aldeias da região de Trás Os Montes, uma das mais pobres do país, grande parte da população emigrou em busca de melhores empregos, em sua maioria para a França. A escola da aldeia fechou por falta de alunos. A linha de trem que servia a região foi descontinuada por não ter passageiros. O voo pinga-pinga que liga Bragança ao restante do país enfrenta dificuldades financeiras.

No Carnaval, no entanto, a aldeia se transforma. Cerca de 50 mil pessoas visitam a região para ver os Caretos de Podence. As famílias dos que emigraram enfrentam viagens de até 14 horas —tempo médio de carro entre Paris e Podence— para voltar ao lugar de origem.

Bedri Simsek, de 31 anos, é um deles. Simsek nasceu em Paris, de mãe portuguesa e pai turco. Seu avô, Amílcar Texeira Mariano, 87, emigrou para a França durante a ditadura salazarista, onde ganhou a vida como pintor na construção civil —chegou a trabalhar no retoque da Torre Eiffel. Aposentado, voltou a morar em Podence.

Simsek, que vive em Paris e trabalha na área de marketing, vai a Podence no Carnaval quase todos os anos. Ele veste a fantasia de Careto guardada na casa do avô —fiapos de lã nas cores amarela, verde e vermelha, máscara vermelha com feições diabólicas e chocalhos na cinta — e cai na folia. “Sinto orgulho de nossas tradições, e um dia pretendo comprar uma casa na aldeia com minha mãe”, diz Simsek, num português com leve sotaque francês.

Os Caretos são homens, mulheres e crianças que saem às ruas de fantasia e máscara no domingo e na terça-feira de Carnaval. Começam fazendo um desfile na rua principal da aldeia. Depois se espalham em meio à multidão, correndo, saltando e abordando as pessoas numa coreografia típica — rebolam balançando os chocalhos, ao mesmo tempo que golpeiam com a anca os desavisados, num movimento conhecido como “chocalhada”. Parece um pouco um bloco de Carnaval brasileiro, em que os Caretos são os animadores da festa.

A grande diferença é a música: em vez de samba, ouve-se sons de gaitas de foles, evidenciando a origem celta do ritual. “Nós reconhecemos vários elementos do nosso Carnaval nos entrudos portugueses”, diz o cineasta brasileiro Fabiano Cafure, que mora em Lisboa e é autor de vários documentários sobre o tema. “Estão lá as fantasias e a ideia de transgressão. O que muda é a música: nossa grande inovação, em relação aos carnavais europeus, é ter trazido o samba para dentro da festa”.

Nos últimos vinte anos os Caretos de Podence se transformaram numa espécie de símbolo cultural do Portugal profundo. Representarão o país na Exposição Mundial de Osaka, no Japão, entre abril e outubro deste ano. Estiveram na Assembleia da República, o parlamento português, durante a festa de 45 anos da Revolução dos Cravos, onde “chocalharam” o então primeiro-ministro António Costa, hoje presidente do Conselho Europeu.

Os Caretos também viajaram por vários países europeus e foram recebidos no Vaticano pelo Papa Francisco em janeiro deste ano. Um livro sobre os Caretos foi prefaciado por Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal. Grafites pintados nos muros da cidade homenageiam Rebelo de Sousa e o papa, além do craque Cristiano Ronaldo. Eles ainda estampam selos e moedas disputados por colecionadores.

A transformação de uma festa quase morta em instituição nacional —as emissoras de televisão do país frequentemente abrem as transmissões sobre o Carnaval com os Caretos de Podence— tem a ver, como muitas coisas em Portugal, com a onda de orgulho patriótico provocada pela Revolução dos Cravos, que em 1974 libertou o país de quase quatro décadas de ditadura. Em 1976, a cineasta angolana Noémia Delgado fez um documentário sobre as tradições culturais do país, e passou por Podence. Na ocasião havia apenas três habitantes da aldeia com fantasia de Careto.

“Os jovens da região haviam emigrado em busca de melhores trabalhos ou ido lutar na guerra colonial, e com isso a tradição se perdeu”, diz o português António Carneiro, presidente da Associação dos Caretos de Podence. “Além disso, a festa não era muito bem vista pelo governo salazarista, pela simbologia transgressora que carregava.”

A fantasia de Careto evoca o diabo. Acredita-se que a festa originalmente acontecia na época de Natal, quando é tradicional o uso de máscaras no norte de Portugal. Os Caretos, provavelmente por influência da igreja, foram empurrados para o Carnaval. A festa termina com a “queima do diabo”, quando um grande Careto de palha é incinerado em meio a aplausos, fogos de artifício e uma dança primitiva ao som de gaitas de foles.

“Festas de mascarados como a dos Caretos são provavelmente anteriores ao cristianismo e eram rituais de iniciação de jovens do sexo masculino”, diz a socióloga portuguesa Patrícia Cordeiro. Natural de Trás Os Montes, com especializações nas universidades de Barcelona e Bolonha, ela foi a organizadora da candidatura dos Caretos de Podence a patrimônio da Unesco.

“Relatos do século passado mostram que os moradores das aldeias da região tinham medo dos Caretos e chegavam a trancar as portas das casas quando eles apareciam”, afirma. “Numa cultura extremamente conservadora, chocalhar as moças solteiras era considerado um escândalo.” De acordo com a socióloga, no entanto, o assédio não ía além disso, e muitas chocalhadas acabavam até em casamento.

“Um dos motivos da decadência dos Caretos foi a mudança dos papeis de gênero. Depois da revolução sexual dos anos 1960, esse tipo de ritual de iniciação masculino deixou de fazer sentido”, diz Patrícia Cordeiro. “Hoje a fantasia de Careto pode ser vestida por homens, mulheres e crianças.”

No início do século passado as fantasias eram feitas com fiapos de cobertores —faz muito frio em Trás Os Montes na época de Carnaval, perto de zero grau— e chocalhos de vacas, típicos de uma região pastoril. Hoje os trajes de Careto são desenhados e costurados por artesãos locais, e os mais elaborados podem custar até 600 euros, ou 3.600 reais. As máscaras e chocalhos saem por 40 euros cada, ou 240 reais.

A motivação para reviver os Caretos surgiu do próprio reconhecimento que a manifestação passou a ter em Portugal depois do filme de Noémia Delgado. “Nos anos 1980, fomos convidados para três festivais de cultura popular na Universidade de Coimbra. Muitos dos jovens de Podence nunca tinham saído de Trás Os Montes, e começamos a ir a todo canto levando a mensagem libertária dos Caretos, em tempos pós-revolução dos Cravos”, diz António Carneiro. “Viajar divulgando nossa cultura passou a ser a grande motivação dos jovens que retomaram a tradição.”

A consagração com a Unesco —numa candidatura considerada “exemplar” pelo organismo, dada a densidade antropológica do material coletado— aconteceu em 2019 e desencadeou o fluxo atual de visitantes. A maioria dos turistas são portugueses, incluindo os que retornam da França para rever as famílias. Chegam de carro, dada a escassez de transporte para a região e a carência de ônibus entre as aldeias locais. Podence não tem infraestrutura hoteleira para abrigar o fluxo, sendo necessário se hospedar em pousadas ou alojamentos locais espalhados pelas redondezas.

A festa é também um pretexto para explorar uma das regiões menos visitadas de Portugal. Trás Os Montes é famosa pelo azeite, pelos vinhos de colheita tardia e alto teor alcoólico e por uma culinária particular. Ela inclui pratos como o cusco —uma variação de cuscuz, de influência árabe— e o butelo com casulas, uma sinfonia de carnes e embutidos acompanhada de vagens de feijão verde. É possível também cruzar a fronteira com a Espanha, a menos de meia hora de Podence, e encontrar foliões que brincam em castelhano.

O ápice, no entanto, é mesmo o carnaval de Podence. Para os brasileiros que se dispõem a enfrentar o frio e a viagem longa, a música inebriante das gaitas de foles, as cores vivas das fantasias e o clima acolhedor de festa na aldeia mostram que Carnavais bem diferentes do nosso podem ser tão animados e fascinantes quanto a folia a que estamos acostumados nas grandes cidades brasileiras.



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