Ao Mercado Modelo de Salvador, a epítome da roubada para turistas, fui com a Angela há quase exatos 14 anos. Aborrecente adolescida, ela andava entediada na viagem com o pai e a madrasta, mas naquele instante notei um brilho de interesse em seus olhos.
Estava à venda um certo extrato de pimenta. Era um óleo translúcido e vermelho como o dendê.
“Gosta de camarão?”, perguntou-me o dono da banca. Resposta positiva, ele pegou um camarão seco, desses que se põem no acarajé, pingou uma gotinha do tal óleo e me entregou.
A fanfarronice cessou quando ele me viu repassar a bomba para a Angela. “Nããããão!”
“Calma, eu sei a filha que tenho.” Ela comeu o camarão com extrato de pimenta, amou, sorriu e me pediu para comprar a substância tóxica.
Angela tem a quem puxar. Visto que tive uma crise de soluços ao provar a tal pimenta, certamente não é a mim.
Lucia Boldrini (1963-2025), mãe da minha filha, morreu na sexta-feira, dia 10. Com ela, aprendi muitas coisas —inclusive sobre cozinhar e comer. Eu era um rapaz bastante cru. Recém-saído da casa dos pais, tinha um paladar pouco aventureiro. Ela, pelo contrário, era viajada e atrevida.
A mulher comia pimenta numa quantidade que não me parecia crível. Pegou gosto em Londres, onde havia morado e se alimentava, em boa medida, de comida indiana.
Eu torcia o nariz para as especiarias orientais, mas topei quando a Lucia sugeriu que fôssemos a um restaurante chamado Cantinho de Goa, que funcionou na avenida Santo Amaro nos anos 1990.
Escolhi o vindaloo de porco —colonizada por portugueses e de população cristã, Goa é um rincão da Índia onde a carne de porco, vetada no hinduísmo e no islamismo, faz parte da tradição alimentar.
Vindaloo vem do português “vinha d’alhos”, marinada para carnes. Como na Índia não havia vinho, a receita mestiça é à base de vinagre de palma e todas as especiarias possíveis. Com ênfase na pimenta ardida, apresentada pelos “tugas” aos indianos.
Enquanto a Lucia comia tranquilamente, eu suava. Desisti na quarta ou quinta garfada. Aquilo era um maçarico.
Muitos anos mais tarde, sozinho em Lisboa, resolvi encarar outro restaurante goês. Pedi novamente o vindaloo e capitulei lá pela metade do prato.
Ao fazer a receita a seguir, tomei o cuidado de cortar pela metade a pimenta. Derrota: sou um fracote e entreguei os pontos mais uma vez.
Provei o prato, lacrimejei e guardei no freezer. Vai ficar para a Angela, filha da Lucia e herdeira do amor pelas pimentas infernais.
Vindaloo de porco
Rendimento: 2 porções
Tempo de preparo: 2 a 3 horas
Dificuldade: Média
Ingredientes
- 400 gramas do corte copa-lombo em cubos
- 1 colher (sopa) de óleo
- 4 dentes de alho picados
- 1 cebola picada
- Coentro a gosto
- Curry
- 5 pimentas malaguetas secas, sem semente
- 1 colher (sopa) de alho desidratado
- 1 colher (sopa) de cominho em grãos
- 1 colher (sopa) de cúrcuma
- 1 colher (chá) de pimenta-preta em grãos
- 1 colher (chá) de feno-grego
- 1 colher (chá) de sal
- ½ colher (café) de canela
- 3 bagas de cardamomo, sem casca
- 2 cravos
- Vinagre de arroz
Preparo
- No moedor de temperos ou de café, bata os temperos do curry até virar pó. Misture com vinagre o bastante para fazer uma pasta rala
- Deixe o porco marinar nos temperos de uma a duas horas
- Refogue o alho e a cebola no óleo. Junte o porco e adicione água até cobrir. Cozinhe até a carne ficar macia, desligue o fogo e adicione o coentro.
- Sirva com arroz
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