Quando um enófilo abre a boca e os termos técnicos começam a desembarcar sem controle de passaporte, o que muitos ouvem é uma sinfonia esnobe e afetada. Mas tem uma palavrinha dessas que, sempre que a ouço, muda meu humor para melhor: “funky”.
Permito-me o anglicismo, neste caso, porque é mais suave do que seu equivalente em português. Uma reflexão acurada do que seria a tradução mais fiel me leva a “fedorzinho”. Funky diz respeito principalmente ao aroma —embora possa também atingir o paladar, tornando o vinho mais adstringente ou mesmo frisante— e geralmente é causado por uma levedura chamada Brettanomyces, que pode ser encontrada nas cascas de frutas e mais comumente em vinhos que passaram por barricas usadas.
Para alguns, a presença de brett, a alcunha dessa levedura, é considerada defeito; para outros, qualidade, porque entendem que as notas aromáticas geradas por ela aportam complexidade à bebida. Quando há brett, o vinho fica menos frutado e pode-se sentir um que de defumado, de couro e até de especiarias.
Parece bom, né? Mas a maionese também pode desandar. À medida que a presença da levedura se intensifica, os aromas ficam mais difíceis: remédio, band-aid, queijo, estábulo, suor. O que era complexidade, então, vira desgosto. Quando encontrei sua presença nesses níveis, eu denominei a nota olfativa como “paninho sujo”, uma referência àquele que fica sempre meio molhado na pia. Mas, numa tentativa de amenizar o choque, aprendi a dizer que são “vinhos rústicos”.
Foi um excesso de brett que me fez torcer o nariz para os primeiros vinhos naturais que provei. Um dos principais antídotos contra a proliferação dessa levedura é o conservante SO2, que é desprezado pelos produtores de baixa ou nenhuma intervenção.
O que acontece é que para fazer um vinho desses totalmente limpo e são, sem aromas indesejáveis ou outros probleminhas, é preciso de muito mais controle nos processos —saem os aditivos, entra o perfeccionismo, a atenção máxima aos detalhes. Quando temos isso, é o paraíso na taça. O preço, por outro lado, costuma ficar meio infernal.
Há regiões que são notadamente atingidas pela levedura e transformaram sua presença em característica; faz parte da tipicidade dos vinhos do norte do Rhône, na França, por exemplo. Vinhos que levam boas avaliações da crítica por ali podem ter notas de couro e especiarias que vêm da brett.
Mas há um funky que traz mais a lembrança de levedura mesmo, de pão de levain, um azedinho gostoso. Esse eu encontro em pét-nats e nos laranjas e ele não vem necessariamente da brett. Tem dias que não são apenas uma surpresa agradável, mas um desejo real: eu escolho a garrafa buscando essa nota. Noutros, socorro, quero distância e apenas pureza e fruta na minha taça.
Se neste fim de semana você vai à Feira Naturebas, no parque Ibirapuera, em São Paulo, preste atenção ao que vai beber; a feira tem a menor concentração de SO2 e outros insumos enológicos entre todas do país. Há ingressos para o domingo (22). Uma dica interessante é passar uma água na taça entre um produtor e outro e cheirá-la antes de preenchê-la mais uma vez, para ter a certeza de que está livre de odores.
Vai uma taça? Um vinho gostoso na linha da rusticidade é o Ted the Mule (R$ 72 na Boccati), que vem do Rhône e mistura grenache a Syrah. Se você quer provar o funky dos espumantes, o Pét-Nat Casa Viccas Lorena (R$ 140 na loja da vinícola) passa 18 meses em contato com as leveduras e traz uma pegada meio pão de levain.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.
Deixe um comentário