Protagonista da Páscoa e vilão dos realities shows de gastronomia, o chocolate é tema do primeiro capítulo da série de reportagens Bê-á-bá da Confeitaria, que pretende descomplicar a arte e a ciência de fazer bolos, docinhos e compotas em casa.
A fama de mau do chocolate não existe à toa: é preciso estar atento a detalhes para fazer receitas como ovos e bombons. “Tudo é uma questão de temperatura. Cada tipo de chocolate derrete a uma temperatura e, se você sair disso, não consegue um bom resultado. Se esquentar demais, dá errado. Se não esquentar o suficiente, também”, diz Priscila França, fundadora da Priscyla França Chocolates.
Antes de qualquer preparo, é importante saber mais sobre os diferentes tipos de produto. No Brasil, uma mercadoria só pode ser chamada de chocolate se tiver ao menos 25% de derivados de cacau na composição —no caso do branco, 20%. Menos do que isso, deve ser vendida como cobertura fracionada ou cobertura sabor chocolate.
Entre os derivados de cacau estão nibs, amêndoa, massa e manteiga de cacau. Além disso, os fabricantes adicionam açúcar e, muitas vezes, leite ao doce.
“Um bom chocolate só precisa disso. Mas às vezes encontramos outros ingredientes, como gordura vegetal e aromatizantes”, afirma Zélia Frangioni, autora do livro “Chocolate Protagonista” (224 págs., R$ 125). A gordura vegetal é utilizada por parte da indústria para baratear custos e facilitar a distribuição do produto.
Já os aromatizantes ajudam a mascarar defeitos no processamento dos grãos de cacau e a padronizar o sabor.
“Você só consegue fazer um bom chocolate, sem aromatizantes, se usar cacau de boa qualidade. Na hora de comprar, tem que olhar a lista de ingredientes. O ideal é não ter aromatizante nem cacau em pó, que é um subproduto”, diz Frangioni, criadora do blog Chocólatras Online.
Hoje já existem marcas que fazem parcerias com produtores de cacau especial para produzir microlotes de chocolate com foco no sabor dos grãos. Muitos desses fabricantes realizam todo o processo de produção, desde a torra da amêndoa até a barra —o que é conhecido como “bean to bar” (do grão para a barra).
“Usamos só cacau, leite, manteiga de cacau e açúcar orgânico”, diz Priscila França. A manteiga de cacau cria a textura aveludada. “Um chocolate feito só com manteiga de cacau desmancha na boca. Mas, se tiver outros tipos de gordura, não derrete fácil.”
Essa característica da manteiga de cacau é o que torna o trabalho com chocolate difícil. Depois de derretê-lo, é preciso realizar a temperagem, técnica para estabilizar a gordura, permitindo que o produto final tenha mais brilho, solte facilmente da forma e resista às mudanças de temperatura.
O método consiste em aquecer o chocolate a uma temperatura entre 40ºC e 45ºC, dependendo do tipo de produto. Depois, resfriá-lo até que alcance entre 26ºC e 28ºC, para então aquecê-lo novamente, a cerca de 30ºC. As marcas para confeitaria indicam as temperaturas na embalagem.
Para derreter, é possível usar o micro-ondas, com cuidado para não esquentar demais. “Coloque de dez em dez segundos, mexendo toda vez. Se colocar 30 segundos direto, pode queimar”, diz Salvador Lettieri, professor da Instituto de Artes Culinárias Le Cordon Bleu São Paulo, que oferece o Diplôme de Pâtisserie, com um módulo sobre chocolates. É necessário controlar a temperatura o tempo todo com um termômetro tipo espeto.
Outra opção é o banho-maria, mas é preciso ter cuidado para não deixar cair água na tigela. “A água é inimiga do chocolate, não se misturam”, diz Lettieri.
Para resfriar, há algumas técnicas. A mais conhecida delas se chama tablagem, na qual o chocolate derretido é despejado sobre uma bancada. “O tripé da temperagem é tempo, temperatura e movimento. Você deve ficar mexendo o chocolate, com uma espátula, até esfriar”, explica Paola Biselli, professora de confeitaria da Escola Wilma Kövesi de Cozinha.
Outra forma de temperar é por adição ou semeadura, em que cerca de dois terços do chocolate é derretido e depois incorporado, aos poucos, ao resto do produto, que foi picado e mantido em temperatura ambiente —o que acaba esfriando a mistura.
Logo após resfriar, é preciso reaquecer, com cuidado para não passar de 34ºC. “Pode colocar uns cinco segundos no micro-ondas. Se passar de 35ºC, tem que refazer todo o processo”, diz Lettieri.
Para saber se a temperagem deu certo, basta molhar a parte de trás de uma colher no chocolate e esperar cristalizar. Deve endurecer em cerca de dois minutos e ficar com aparência uniforme. “Um chocolate que não foi bem temperado vai cristalizar com erros visuais e de textura.”
Entre os erros mais comuns está o “fat bloom”, manchas esbranquiçadas de gordura —problema que também acontece quando o doce fica exposto ao calor. A temperagem mal feita ainda pode fazer com que uma barra derreta ao toque ou fique meio mole, sem o chamado efeito “snap”, barulhinho que faz quando é quebrada.
Como o controle da temperatura é crucial, o ideal é fazer a temperagem em um local com ar-condicionado, principalmente em dias quentes. Se não, uma alternativa é trabalhar à noite, sugere Paola Biselli.
Depois de temperado, o chocolate pode ser colocado em formas de bombons ou barras e levado à geladeira, mas não por muito tempo. “Depende do tamanho e da espessura, mas, em média, de 15 a 30 minutos, até ele contrair e soltar da forma”, explica a chef chocolatierè Renata Arassiro.
É melhor evitar a geladeira para armazenar o produto pronto, porque a umidade causa outro defeito: o “sugar bloom”, em que se formam cristais de açúcar na superfície do doce. Além disso, o chocolate pode ser contaminado com o cheiro de outros alimentos.
“O ideal é a pessoa guardar em ambiente climatizado ou adega”, afirma Arassiro. Quem não tem nada disso pode deixar dentro do armário ou em uma gaveta, o mais longe possível de cheiros e variações de temperatura.
A geladeira deve ser o último recurso, só se estiver muito quente. E, nesse caso, Arassiro ensina um truque: embalar o produto com filme plástico e colocar em um pote hermético. “Quando for consumir, tire o chocolate embalado da geladeira e deixe atingir a temperatura ambiente antes de abrir.”
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