Numa remota ex-prisão em Louisiana, relatos de instalações insalubres e alimentação escassa são generalizados. Especialistas há anos pedem o fechamento do local por violar direitos humanos. Escalada de operações de busca de imigrantes interrompe o sonho americano para indocumentados, submetidos a um precarizado sistema de detenções nos EUA
DW
Numa remota ex-prisão em Louisiana, relatos de instalações insalubres e alimentação escassa são generalizados. Especialistas há anos pedem o fechamento do local por violar direitos humanos.
Ao embarcarem no tortuoso caminho para a deportação, brasileiros têm sido enviados a uma detenção nos Estados Unidos (EUA) que acumula um longo histórico de violações de direitos humanos. Os imigrantes que passam pelo Centro de Processamento de Pine Prairie e as suas famílias denunciam tratamento desumano e condições insalubres dentro da antiga prisão, que hoje serve ao Serviço de Imigração e Controle de Aduanas (ICE).
O cenário drástico retratado por brasileiros que estão ou estiveram detidos em Pine Prairie inclui alimentação escassa e insalubre, instalações em más condições de higiene, falta de itens básicos e tratamento agressivo ou negligente de guardas. Parte deles relata dificuldades para obter cuidado médico apropriado e manter comunicação com famílias e advogados.
“Eles nos tratam aqui como animais”, diz Nelson (nome fictício), de dentro da detenção, à DW por telefone. “Está muito difícil. Eu choro todos os dias e só quero a minha liberdade.”
Até a manhã de sexta-feira (28), havia ao menos três brasileiros em Pine Prairie. Cerca de cinco passaram por lá em março. Todos homens, os detidos podem chegar a 1.094, segundo o grupo privado com fins lucrativos GEO, que opera desde 2015 as instalações num ponto remoto do estado de Louisiana.
“Mentalmente, isso aqui é uma loucura”, afirma Alberto (nome fictício), também mantido no centro de detenção. “Eles só nos jogam nas celas, e qualquer coisa que a gente precise demora uma eternidade.”
A Pine Prairie, chegam imigrantes apreendidos pelo ICE em diferentes regiões dos EUA. “Ele me diz que é humilhante estar lá”, reporta um familiar de um terceiro brasileiro, que só raramente consegue se comunicar com ele. A viagem de carro para chegar a Pine Prairie levaria 25 horas.
Detidos passam fome e sede
Um relatório da organização Robert F. Kennedy Human Rights (RFK) corrobora os depoimentos dos brasileiros, com base em entrevistas com imigrantes detidos até 2021. Especialistas há anos advogam pelo fechamento das instalações, argumentando que elas são palco de violações de direitos humanos e das próprias diretrizes do ICE.
À DW ou a parentes com quem se comunicaram, imigrantes brasileiros relataram que os detidos em Pine Prairie usam todos os dias a mesma muda de uniforme, incluindo peças íntimas, e que faltam cobertores, lençóis e toalhas. Já a alimentação é descrita como em quantidade insuficiente e de qualidade, duvidosa.
“A cada dia eu só vou perdendo mais quilos, porque a comida que eles dão não sustenta”, conta Nelson. Nas aproximadas 20 horas que separam um jantar no meio da tarde de um almoço seguinte, ele recebe apenas um pão e uma caixa de leite, que não pode consumir por restrições alimentares.
Depoimentos coletados pela RFK indicam que, pelo menos até 2021, o centro regularmente oferecia alimentos expirados. É frequente ainda o relato de que os imigrantes só têm acesso a uma garrafa de água mineral ao dia. A alternativa é água da torneira com gosto de cloro e de coloração amarelada.
“Comia quem tinha coragem”, conta Joaquim (nome fictício), que perdeu sete quilos ao longo de duas semanas em Pine Prairie. “Quando davam a garrafinha de água, você tinha que tomar metade e guardar o resto para quando desse sede mesmo. Uma vez, consegui pedir ajuda para um detento brasileiro que estava trabalhando, e ele me deu água e comida escondido.”
O Grupo GEO briga na Justiça americana para não ser forçado a equiparar ao salário-mínimo o pagamento dos imigrantes que trabalham nas suas instalações, inclusive com serviços pesados. Hoje, o valor pago é de 1 dólar ao dia.
Condições insalubres
Os imigrantes relatam ainda serem mantidos por até quatro dias numa sala de triagem. Joaquim contou 20 imigrantes dormindo no chão ao longo de dois dias. Depois, ele seria levado com outros sete homens a uma cela isolada, antes de migrar para os dormitórios comuns, que abrigam cerca de 70 homens em beliches.
“A cela estava imunda, e nós mesmos limpamos tudo. Tinha muita poeira e cheiro de mofo. Ficamos ali por seis dias sem ver a luz do dia e só com a roupa do corpo”, relembra Joaquim, que tampouco tinha comunicação com o mundo externo neste período.
É também amplamente relatado que instalações úmidas e fechadas provocam dificuldades respiratórias. “Aqui dentro, ninguém consegue se curar, pois o próprio ambiente não ajuda. É cheio de bactérias. Desde que cheguei aqui, estou mal, com garganta inflamada, catarro, febre e dor de cabeça”, diz Alberto.
O centro de Pine Prairie chegou a ser parcialmente esvaziado em 2023, após a RFK e outras organizações terem levado o caso à Justiça. Um processo judicial foi aberto após agressões físicas a dois solicitantes de asilo, que foram submetidos a confinamento solitário, por protestarem pacificamente contra as más condições.
Medo dentro e fora da detenção
Em Pine Prairie, eclodem ainda regularmente brigas num ambiente de alta tensão entre detidos mentalmente esgotados, que têm acesso a lâminas de barbear, segundo as testemunhas brasileiras. O tratamento pelos guardas é caracterizado pelos entrevistados como intimidador e agressivo.
Os funcionários só se comunicam em inglês, embora os imigrantes mantidos ali frequentemente não dominem o idioma, dificultando os seus pedidos de ajuda.
“Se tem uma briga aqui, as pessoas podem matar umas às outras, porque os oficiais que trabalham aqui são, infelizmente, muito poucos”, diz Nelson. “Não tem estrutura para manter esse tanto de gente presa.”
Parentes também se queixam de dificuldade generalizada para enviar recursos aos detidos, que servem para comprar mais comida ou telefonar. Visitas são permitidas aos fins de semana, mas praticamente impossíveis para parte das famílias por conta das longas distâncias.
Outras temem se apresentarem numa detenção do ICE quando não têm status migratórios regularizados. Nos primeiros 50 dias de mandato do presidente Donald Trump, o ICE efetuou quase 33 mil prisões.
“Os detidos pelo ICE não cometeram nenhum crime, e a única justificativa para a sua detenção é garantir que elas compareçam ao tribunal. Mas o que vemos é que estas condições são punitivas, e alguns até as descrevem como piores do que uma prisão”, afirma Sarah Decker, advogada especializada da RFK. “As pessoas são horrivelmente abusadas neste centro e em outros do estado de Louisiana.”
Abuso sistêmico
No sul do território americano, o estado de Louisiana é conhecido popularmente entre imigrantes como “ponto de não retorno”, por ser frequentemente a última etapa de longas jornadas pelo precarizado sistema de detenções do ICE ao redor dos EUA.
São sistemáticos os relatos de violações de direitos e de condições inerentemente desumanas. No primeiro mês de governo Trump, três mortes foram reportadas sob detenção do ICE, que a União Americana pelas Liberdades Civis (Aclu, na sigla em inglês) atribui a condições degradantes.
“Com o atual governo e a provável expansão das detenções, infelizmente esperamos continuar vendo ainda mais abusos, negligência e mortes sob detenção do ICE”, afirmou Liz Casey, assistente social e defensora dos direitos dos migrantes, em nota divulgada pela Aclu na Flórida.
Segundo a agência ProPublica, o preço das ações do grupo GEO, hoje avaliadas em US$ 4 bilhões, dobrou após a eleição de Trump e seu projeto linha-dura para a imigração em novembro. Só em 2024, o grupo GEO lucrou US$ 31,9 milhões com a operação de 79 mil leitos em 100 instalações de segurança, centros de processamento e centros comunitários de reintegração.
Em comunicado, a empresa discordou das alegações sobre os centros de detenção do ICE sob sua operação, incluindo o de Pine Prairie. “Nossos serviços contratados são monitorados pelo governo federal para garantir o cumprimento rigoroso de todas as normas federais aplicáveis”, disse um porta-voz, adicionando que se tomam ações corretivas rapidamente quando necessário. O ICE não respondeu a um pedido de comentário.
Já o Itamaraty afirmou que agentes consulares fazem visitas frequentes a centros de detenção e que mantém reuniões com os escritórios regionais do ICE, a fim de garantir que brasileiros recebam tratamento adequado. Mas não comentou sobre os casos dos cidadãos brasileiros em Pine Prairie até o fechamento da reportagem.
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