Lar Música Cindy Lee: Quem é a misteriosa sensação do pop? – 15/03/2025 – Música
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Cindy Lee: Quem é a misteriosa sensação do pop? – 15/03/2025 – Música



BBC News Brasil

De todos os nomes da música que despontaram em 2024, Cindy Lee foi o mais fascinante —e o mais misterioso. Em março do ano passado, seu álbum “Diamond Jubilee” se mostrou um surpreendente caleidoscópio de 32 faixas lo-fi, com duas horas de duração, que inclui sons inerentes ao rock e ao pop.

O álbum surgiu como num passe de mágica —uma extensa e suntuosa imersão de belas melodias que parece um sonho. Várias de suas canções são devastadoras, recheadas de perda e saudade.

Mas esse álbum independente não era muito acessível ao público. Especificamente falando, ele não ficou disponível nos serviços de streaming, nem em formatos físicos.

O álbum traz uma variedade musical atraente. Ele parte do núcleo estético das girl bands, como The Supremes, até chegar à música folclórica, psicodélica, glam rock, rockabilly, doo-wop, rock no estilo da banda The Velvet Underground e baladas como as da dupla The Righteous Brothers.

Mas, para ouvir, era preciso visitar um antiquado website no estilo do GeoCities, com aparência dos anos 1990. De lá, era possível baixar os arquivos de um serviço chamado Mega, mediante o pagamento de uma doação sugerida em US$ 30 (cerca de R$ 175).

Tudo ficou mais fácil quando o álbum foi carregado para o YouTube, pouco tempo depois.

As pessoas logo ficaram ansiosas para descobrir: quem, na verdade, é Cindy Lee? Afinal, não havia campanha de relações públicas, nem entrevistas, nem presença nas redes sociais.

Na verdade, acabamos descobrindo que ela é o enigmático alter ego drag do cantor e compositor alternativo canadense Patrick Flegel, da banda Women —puro combustível que gerou admiração no cenário do rock indie dos anos 2000. Foram dois álbuns lançados e aclamados, até a banda se separou depois de uma troca de socos no palco.

Flegel começou seu projeto Cindy Lee em 2012, pouco depois da sua primeira apresentação ao vivo, tocando baixo na banda de um amigo, usando seu traje drag característico: peruca cacheada, vestidos de lantejoulas douradas ou prateadas, botas de cano alto e casaco de pele.

“No contexto do drag moderno, a minha forma é muito simples, convencional, básica e tradicional”, segundo eles, em uma rara entrevista de 2020. “Sou como uma drag queen dos anos 1960 que não saiu do armário… [em] uma tradição de arquétipos de divas como Patsy Cline [1932-1963], Tammy Wynette [1942-1998] e Diana Ross.”

A música e o visual não foram deliberadamente combinados de nenhuma forma específica, segundo explicou Flegel em outra entrevista, de 2022.

“Realmente, não tinha nada a ver inicialmente um com o outro”, segundo ele. “Eles simplesmente meio que se combinaram. Mas é uma espécie de jogo de longo prazo, não é apenas alguma ideia que coloquei no papel —é simplesmente a minha vida.”

O SURGIMENTO DO APELO

Os seis álbuns anteriores de Flegel como Cindy Lee tiveram pouco impacto. E o notável formato heterodoxo de “Diamond Jubilee” poderia ter sido outro fracasso de vendas. Mas os fãs de música mais atentos que descobriram o álbum não se cansavam de ouvi-lo. Com isso, surgiu a boa e velha publicidade de boca em boca.

Fóruns da internet como o Reddit ficaram repletos de elogios. A seção de comentários do YouTube foi unânime em sua efusividade. “Este é um dos melhores álbuns que ouvi na última década. Uau!”, diz uma postagem típica.

“Havia um certo ar de mistério que fez com que ele parecesse único”, afirma o autor e crítico de música Steven Hyden, um dos apresentadores do podcast sobre rock indie Indiecast, da plataforma Uproxx. “Acrescente-se a isso o magnetismo.”

“Realmente, parecia uma fita mixada de músicas que poderiam ter feito sucesso 40 ou 50 anos atrás, mas que ninguém havia ouvido. Esta era a qualidade a que muitas pessoas reagiram. E, embora Patrick realmente tivesse esse histórico de rock indie, a sensação foi como se aquilo tivesse saído do nada.”

Em outubro do ano passado, foi oferecido um download mais convencional para compra na comunidade musical e loja de gravações online Bandcamp, que conecta artistas independentes a fãs de música fiéis e pagantes.

Foi ali que o álbum se tornou incrivelmente popular. E, duas semanas depois, chegou finalmente o lançamento físico, em vinil e CD.

“Quase instantaneamente, foi um dos produtos de maior venda no site”, afirma Aly Gillani, representante de gravadoras e artistas europeus da Bandcamp e fundador da gravadora independente First Word Records. “Vendeu muito bem e continua vendendo.”

O álbum recebeu estrondosos elogios da imprensa musical online americana. O site Aquarium Drunkard descreveu o álbum “Diamond Jubilee” como “um retorno para uma era melhor, diferente, menos comum e mais agradável da música independente”.

A revista online Pitchfork, uma das líderes do mercado, deu ao álbum a nota 9,1 —a mais alta da revista para um álbum novo nos últimos quatro anos. Com isso, a Pitchfork impulsionou Cindy Lee como ela fazia no seu apogeu, quando formava o gosto musical dos anos 2000. Suas críticas costumavam ajudar a promover bandas indie como Arcade Fire.

Paralelamente, o jornal britânico The Guardian elegeu “Diamond Jubilee” o segundo melhor álbum de 2024, atrás apenas do colosso cultural chamado Charli XCX e da obra-prima do dance-pop “Brat”.

Mas existe uma certa incongruência ao ver “Diamond Jubilee” e “Brat” lado a lado. “Brat” foi o protótipo do álbum do século 21, com uma campanha própria da época atual: marketing agressivo e autoconsciência inteligentemente alta.

“Brat” dominou o discurso online com memes e momentos virais nas redes sociais. Sua estratégia funcionou tão bem que a marca chegou a atingir até a ex-candidata à presidência americana Kamala Harris.

Mas “Diamond Jubilee” rejeitou quase todas as teorias vigentes sobre como se deve vender e consumir música na era moderna. O álbum gerou um debate sobre as práticas da indústria musical como um todo e sobre o relacionamento entre fãs e artistas, muito além das próprias canções.

Para um certo tipo de fã de música —altamente engajado e comprador de gravações— o ato da descoberta foi uma enorme parte do apelo do “Diamond Jubilee”. Isso sem falar na dedicação necessária para pesquisar e, depois, digerir a ambiciosa visão artística de Flegel.

“Ele realmente se apoia no desejo de alguns fãs de música, de voltar para como tudo costumava ser”, explica Gillani, “quando eles conseguiam encontrar um álbum, ficar animados e realmente mergulhar nele, em vez de pular constantemente de um para outro. Existe um anseio das pessoas por apreciar diretamente as grandes atividades artísticas.”

“As pessoas se sentem envolvidas desde o princípio, de uma forma difícil de conseguir atualmente na internet”, afirma Hyden.

“E, com a sensação de que esta gravação não estava sendo empurrada pela garganta das pessoas pelas redes sociais, pelas gravadoras ou pela mídia corporativa, tudo se combinou para fazer com que este parecesse um evento especial, mas ainda um evento de nicho.”

O PODER DO CAMINHO ALTERNATIVO

É claro que não é nenhuma novidade ver artistas encontrarem formas diferentes de promover e vender sua música —como o lançamento surpresa do quinto álbum de Beyoncé em 2013 e o disco sem nome de Jack White, no ano passado.

Inicialmente, White deu de presente cópias em vinil não identificadas em sacos plásticos para clientes aleatórios nas suas lojas Third Man Records, mostrando que uma técnica inovadora pode incendiar uma campanha publicitária.

“Se você for um artista maior com uma plataforma, você tem condições de assumir riscos que, talvez, os artistas menores não consigam”, explica Aly Gillani. Mas ele destaca que músicos desconhecidos, às vezes, podem empregar estratégias de lançamento fora do comum, com efeitos poderosos.

Gillani destaca o reservado coletivo neo-soul londrino Sault. Ninguém confirmou sua identidade por anos e eles também se recusavam a dar entrevistas. Certa vez, o Sault abriu cinco álbuns simultaneamente para download gratuito durante uma janela de cinco dias.

“Cindy Lee e Sault tomaram ações que não seriam necessariamente aconselháveis”, afirma Gillani. “E o fato de que a sua música é excepcional certamente ajudou.”

“Mas, como fã de música, aquilo captura minha imaginação. E fazer algo assim pode ser realmente uma forma eficaz de evitar tudo aquilo que você ‘tem’ que fazer para lançar músicas.”

A teoria é que, se as pessoas precisarem ter mais trabalho para ouvir algo, o resultado será mais recompensador. “Você quer que as pessoas se conectem em nível emocional”, explica Gillani. “E acho que criar algumas barreiras, sim, é um risco, pois elas poderão não atravessar essas barreiras.”

“Mas, se elas conseguirem, a conexão emocional é duplicada, triplicada. É difícil superar isso.”

E, apesar do que possa parecer, Gillani defende que realmente houve promoção do álbum “Diamond Jubilee”. “É certamente uma estratégia de alto risco, mas ainda é uma estratégia.”

Mas não é algo que se possa ver com frequência no nosso mundo online, saturado de conteúdo supercompartilhado: um artista que dá a impressão de que não se incomoda se a sua música é ouvida ou não.

Campanhas de relações públicas de alto custo, com forte presença nas redes sociais, são o padrão dos artistas que lutam desesperadamente pela nossa atenção. “Nos anos 1980 e 1990, os artistas não saíam descaradamente em busca de influência, como fazem agora”, segundo Hyden.

“Não estou culpando os artistas atuais por buscarem influência, pois estamos em um ambiente onde você simplesmente tenta fazer sua música ser ouvida em meio a uma enorme disponibilidade de conteúdo online. Mas Patrick representou um retorno [ao passado] por não fazer essa busca.”

A rejeição de Flegel ao streaming levanta um debate cada vez maior sobre o estado da indústria musical e o lado econômico do streaming em particular. Certa vez, Cindy Lee declarou no seu website que o CEO (diretor-executivo) do Spotify, Daniel Ek, “é um ladrão e um porco de guerra”.

No que terá pensado Flegel quando um upload ilegal de “Diamond Jubilee” surgiu repentinamente no Spotify e foi derrubado pouco tempo depois?

Vivemos atualmente uma crise mundial do custo das turnês. Uma pesquisa recente da distribuidora Ditto Music indicou que 84% dos artistas britânicos independentes não conseguem mais sair em turnê.

Além disso, os artistas menores que sofreram a redução das vendas físicas, agora, quase não têm retorno financeiro do streaming. Oficialmente, o Spotify paga entre US$ 0,003 e US$ 0,005 por execução (cerca de R$ 0,017 a R$ 0,029). Estes valores são divididos entre todos os proprietários de direitos autorais —que podem incluir as gravadoras, além dos artistas.

Para os usuários, as vantagens de custo e conveniência são óbvias, mas o streaming fez com que o trabalho dos artistas fosse desvalorizado. “O Spotify se tornou um local bastante inóspito para os artistas que não recebem muitas execuções”, explica Steven Hyden.

“As pessoas tratam o Spotify como tratam a Netflix. E, se o filme não estiver na Netflix, é como se o filme não existisse.”

“Existe uma ilusão de que aquilo é o mundo inteiro”, prossegue ele. “Esperamos que as pessoas percebam, com ‘Diamond Jubilee’, que nem tudo o que existe para ser ouvido está nas plataformas de streaming. Existem muitos artistas que operam fora daquilo porque decidiram fazer assim.”

Ao persistir na campanha do seu álbum inicial, ou na falta dela, Cindy Lee demonstrou que não tem interesse em capitalizar seu status mais alto.

Mesmo antes do cancelamento a meio caminho da sua turnê pelos Estados Unidos no final de maio, por motivos pessoais não revelados, uma mensagem no website já anunciava: “esta será a última turnê americana de Cindy Lee”.

Os críticos que viram os shows que realmente aconteceram —apresentações solo de 45 minutos, nas quais Flegel, no seu visual de Cindy Lee, com vestido dourado e peruca cacheada, tocou com uma faixa de apoio— relataram que o público ficou arrebatado, assistindo ao seu talento fenomenal com a guitarra.

Flegel tocava “com maestria casual que eu imaginava que estivesse reservada para quem tivesse tratos com o diabo”, escreveu Meaghan Garvey, da rede de rádio pública americana NPR.

Mas também surgiram hesitações durante os shows. Ian Cohen, do site Stereogum, observou que, em San Diego (Califórnia), Flegel comentou no palco: “Eu me sinto como um animal enjaulado”. “O desconforto de Patrick com a exposição manteve o status de Cindy naquele nível cult”, afirma Hyden. “E talvez esteja onde deveria estar.”

“Talvez algumas coisas se destinem apenas a uma audiência de conhecedores e apreciadores. Mas não estamos acostumados com esta forma de pensar na era da internet.”

“Antes da internet, se você estivesse no mundo indie, as pessoas compreendiam que você não estava tentando atingir audiência de massa e isso permitia que você se dedicasse de forma diferente”, explica ele.

“Agora, todos estão na mesma plataforma. Por isso, se você tiver apenas 100 mil ouvintes mensais no Spotify, a imprensa comenta como se você realmente não tivesse importância, porque eles comparam você com o Coldplay. Isso não ajuda.”

Por isso, histórias como a de Cindy Lee estão ficando mais raras, mas não impossíveis. “Depende de muitas coisas darem certo”, destaca Gillani.

E ninguém está sugerindo que outros artistas devam copiar exatamente a estratégia de Cindy Lee. Para Hyden, “Diamond Jubilee” é “uma gravação única neste sentido”. Mas existem indicações que os artistas devem levar em conta. “Acho que a grande lição é ter consciência do que você está fazendo”, explica Gillani.

“A indústria está repleta de pessoas dizendo: ‘você tem que fazer isso, você tem que fazer aquilo’. Mas esta é a sua arte e a sua expressão – seja cuidadoso com o que você faz com ela. Não despeje necessariamente tudo aquilo na forma mais padronizada.”

Ninguém poderá acusar Cindy Lee de fazer isso. E, depois de irem a campo no auge da popularidade, não se sabe ao certo o que o futuro reserva para eles.

Mas a técnica de promoção de “Diamond Jubilee”, de certa forma, deu frutos. A música irá sobreviver, mas cada pessoa irá escolher como e quando apreciá-la.

Nas palavras de Hyden, “Diamond Jubilee” parece “um daqueles álbuns que as pessoas irão descobrir ao longo dos anos”.

Este texto foi publicado originalmente aqui.



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