Enquanto o cinema e a TV constroem um imaginário idílico sobre a Sicília, a realidade da ilha é a do sul da Itália, metade mais pobre de um dos países europeus mais regionalmente desiguais. Mas a carência econômica contrasta com a riqueza cultural e gastronômica, motor do turismo ali. Hotéis e restaurantes salvaram o lugar de se tornar um deserto demográfico, como ocorreu em outras regiões vizinhas.
O percurso básico no sentido horário a partir de Palermo —capital da Sicília, onde fica o principal aeroporto— inclui Cefalu, Taormina, Catania, Siracusa, Ragusa e Agrigento.
Cefalu é uma cidadezinha à beira-mar onde está a sala de projeção de “Cinema Paradiso”, clássico do diretor Giuseppe Tornatore. A catedral da cidade, com belíssimos mosaicos construídos por mestres trazidos de Constantinopla pelo rei Rogério 2º, é uma das nove construções em estilo árabe-normando declaradas Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco —as outras oito estão na capital, Palermo.
No século 11, o sul da Itália foi dominado pelos normandos, que também ocuparam a região onde hoje é o Reino Unido. Na Sicília, eles criaram uma forma peculiar de arquitetura, que incorpora elementos árabes e bizantinos, povos e culturas que antes haviam se estabelecido naquela região.
Algumas das cenas iniciais de “Cinema Paradiso”, premiado com o Oscar de melhor produção em língua estrangeira em 1988, foram filmadas em outro ponto que vale visitar em Cefalu, o Teatro Cicero, cujo nome homenageia Salvatore Cicero, virtuose do violino que se consagrou internacionalmente e depois voltou para a Sicília para fundar uma orquestra.
Uma placa na frente do prédio homenageia os que, como ele e Tornatore, fizeram esse percurso de ida e volta: “Aos que sempre desejaram a fuga da ilha, mas desejaram mais ainda o retorno”.
A 200 km dali fica Taormina, principal centro turístico da parte oriental da ilha, onde a maior parte da trama de “The White Lotus” se desenrola. O enorme hotel onde se passa a história domina a paisagem da cidade, com o vulcão Etna ao fundo.
O melhor de Taormina é o anfiteatro romano, que ainda é utilizado em festivais de cinema e de teatro. O excesso de turistas num espaço pequeno, somado a uma oferta gastronômica pobre para o padrão siciliano, compromete um pouco a visita à cidade.
Comer bem na Sicília é quase uma obrigação. A gastronomia siciliana, riquíssima, se baseia toda em ingredientes da região.
Há o pistache da cidade de Bronte, os tomates-cereja das encostas do vulcão Etna, os excelentes queijos frescos e curados da região de Ragusa, os famosos limões-sicilianos, berinjelas e amêndoas por toda parte e abundância de frutos do mar —afinal, se trata de uma ilha no Mediterrâneo.
Ao contrário de outras regiões turísticas da Itália, como Veneza, onde a gastronomia regional cedeu espaço para pratos que agradam aos visitantes —pizzas e lasanhas supostamente “da nonna”—, a gastronomia siciliana se orgulha de ter estilo próprio, embora às vezes fique um pouco repetitiva em seu narcisismo.
Os melhores restaurantes estão na maiores cidades da ilha, como Catania e Palermo. O molho típico de Catania é o alla norma, à base de berinjela e tomate e eventualmente finalizado com um queijo local —na Sicília raramente se usa parmesão, que é típico do norte da Itália.
São também frequentes em Catania as massas al limone ou com pesto de pistache, além dos peixes e frutos do mar, principalmente anchovas frescas, com sabor mais suave que as do Brasil.
Catania é uma cidade particular. Ela fica ao pé do Etna, e o vulcão está intimamente ligado à história e ao cotidiano do local. Uma grande erupção no final do século 17 destruiu a cidade, que foi reconstruída posteriormente de acordo com os cânones da arquitetura barroca italiana.
Há várias joias desse estilo, como a catedral e o Palazzo Centrale, onde hoje funcionam departamentos da Universidade de Catania, a mais antiga da ilha. Grande parte dos edifícios conserva um aspecto cinzento, em parte devido à fuligem da fumaça que o Etna solta até hoje.
Há um belo teatro de ópera, batizado com o nome de Vicenzo Bellini, nascido na cidade. A massa alla norma, mencionada antes, empresta seu nome da ópera mais famosa do compositor.
A parada seguinte, Siracusa, equivale a entrar numa máquina do tempo. A cidade foi a mais importante da ilha nos séculos de domínio grego, entre 700 e 200 a.C.
O parque arqueológico de Neápolis tem o maior anfiteatro romano da ilha, embora não esteja tão bem conservado quanto o de Taormina. Em Neápolis há uma caverna conhecida como “orelha de Dionisio”, por sua acústica privilegiada. Consta que um dos reis de Siracusa encaminhava os prisioneiros para lá com o intuito de ouvir suas conversas.
O centro histórico da cidade fica numa ilha, Ortigia, que é um dos conjuntos urbanos mais bonitos da Sicília, misturando arquitetura barroca e ruínas clássicas.
Em Ortigia morava Arquimedes, famoso por teoremas e por ter desenvolvido armas de guerra. Um museu bastante didático mostra a contribuição dele para a ciência. Vale a visita, e mais ainda se perder pelas ruas estreitas de Ortigia, com restaurantes e lojas. Essa parte de Siracusa foi cenário de “Malena”, outro
filme de Giuseppe Tornatore.
O romance mais famoso ambientado na Sicília é “O Leopardo”, de Giuseppe Tomasi Di Lampedusa. Alguns dos trechos do livro se passam no feudo de Donnafugata, onde o protagonista, o Príncipe de Salina, passa temporadas.
É em Donnafugata que os ambiciosos Angelica e Tancredi se encontram pela primeira vez. A região é visitada por causa do filme, ainda que nenhuma cena tenha sido rodada lá— quase todas as tomadas foram em Palermo. Há um castelo que vale a visita, principalmente pelos jardins criados no século 19 pelo barão Corrado Arezzo, incluindo um labirinto que ele considerava ideal para refletir sobre a existência.
Donnafugata fica perto de Ragusa. Construída em terreno montanhoso, tem duas partes: uma, antiga, chamada de Ibla, que se destaca pelas ruas estreitas e arquitetura barroca; e a parte moderna, no alto, com restaurantes e uma vida noturna movimentada. Em Ibla, as igrejas são famosas e valem a visita.
Ragusa é uma das capitais gastronômicas da Sicília, e vale a pena provar o queijo local, em suas versões fresca e curada. É um lugar para comer sem culpa, pois as calorias serão gastas nas ladeiras vertiginosas da cidade, cenário preferencial da antiga série policial “O Comissário Montalbano”.
A parada seguinte, Agrigento, também tem uma vida noturna movimentada, mas poucos atrativos arquitetônicos. O melhor está em Vale dos Templos, também declarado Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco.
Vale reservar algumas horas para percorrer a região onde, se supõe, ficava a antiga cidade grega de Akraga. O pôr do sol costuma ser estupendo, e há templos dedicados a divindades da mitologia grega, como Juno, Zeus e Hércules.
Depois de Agrigento, resta dar um respiro pelas praias e ilhas de Trapani —as cidades do lado ocidental não são tão bonitas quanto as do lado oriental— para mergulhar na impressionante Palermo.
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