Em mais um capítulo de uma prolongada crise política, a França está de novo sem primeiro-ministro, apenas 90 dias depois da nomeação de Michel Barnier. As duas extremidades do plenário da Assembleia Nacional, esquerda e ultradireita, aprovaram uma moção de censura ao governo nesta quarta-feira (4).
Na sessão, 331 dos 577 parlamentares votaram pela censura, derrubando o frágil gabinete de centro-direita de Barnier, o mais breve desde 1958.
“Esta moção de censura deixará tudo mais grave e mais difícil”, discursou Barnier no plenário antes da votação, referindo-se à situação econômica da França. Em tom de despedida, citou Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), autor do “Pequeno Príncipe”: “Cada um é responsável por todos. Cada um é o único responsável. Cada um é o único responsável por todos.”
Na prática, o premiê continua no cargo apenas para cuidar dos “assuntos correntes”, até o presidente Emmanuel Macron indicar seu sucessor.
Entre os vários nomes especulados estão François Bayrou, veterano centrista e próximo a Macron; Sébastien Lecornu, atual ministro do Exército, também fiel ao presidente; e Bernard Cazeneuve, ex-primeiro-ministro, da esquerda moderada. Macron também pode pedir ao próprio Barnier que forme um novo gabinete.
O pretexto para o voto de censura foi a decisão de Barnier de impor o orçamento de 2025 sem passar por votação no Parlamento, invocando o artigo 49, alínea 3, da Constituição francesa.
O recurso ao “49.3”, como é chamado, era inevitável porque Barnier não conseguiu convencer a líder da ultradireita, Marine Le Pen, a apoiar o orçamento proposto, que prevê economia de € 18 bilhões (cerca de R$ 115 bilhões).
O partido de Le Pen, a Reunião Nacional (RN), exigiu uma série de mudanças no orçamento, como a anulação de um aumento na conta de luz, para votar a favor. O governo aceitou algumas, mas não todas. De olho na eleição presidencial de 2027, cujas pesquisas lidera, e ameaçada de inelegibilidade pela acusação de desvio de fundos do Parlamento Europeu para o caixa da RN, Le Pen anunciou que votaria pela censura.
“Nós tínhamos uma escolha a fazer, e a escolha que fizemos foi proteger o povo francês”, disse ela logo após a sessão.
O cálculo eleitoral explica a incongruente aliança entre os extremos da esquerda e direita para derrubar Barnier. Jean-Luc Mélenchon, líder do maior partido de esquerda, A França Insubmissa (LFI), também tem ambições presidenciais. Macron, já no segundo mandato, não pode se candidatar.
Tanto LFI quanto RN apresentaram moções de censura. Por razões regimentais, a primeira a ser votada foi a da esquerda.
Na tentativa de se salvar, o governo brandiu a ameaça de uma crise econômica e argumentou que o descumprimento dos prazos orçamentários impactará contribuintes e funcionários públicos e assustará investidores, prejudicando a economia.
“Os engenheiros do caos vão privar de orçamento nossos policiais, nossos militares, nossos agricultores”, declarou a deputada Maud Bregeon, porta-voz do governo, referindo-se à RN e à LFI.
“A crise já está aqui. A única chance de o país sair da crise é rejeitar este governo, e se isto não bastar, rejeitar Macron”, disse à Folha o deputado Eric Coquerel (LFI), presidente da Comissão de Finanças da Assembleia e responsável pela análise do orçamento.
Durante visita oficial à Arábia Saudita, Macron qualificou de “ficção política” o clamor da oposição pela sua renúncia. “Fui eleito duas vezes pelo povo francês”, declarou o presidente, que chegou a Paris pouco antes da votação.
O risco de um “shutdown” à americana, em caso de não aprovação do orçamento, é reduzido, pois o governo dispõe de mecanismos para manter a máquina pública funcionando.
Mas os problemas econômicos franceses são reais. O déficit público é de 6% do PIB, e a dívida pública, de 112%, ou € 3,2 trilhões (cerca de R$ 20 trilhões). Em maio, a agência Standard & Poor’s rebaixou a nota da dívida francesa de AA para AA-.
“A França virou Grécia-sur-Seine?”, brincou esta semana em editorial o Wall Street Journal americano, uma referência à gigantesca crise da dívida grega 15 anos atrás. A França de 2024 ainda está longe, porém, da Grécia de 2009.
O risco de agitação popular existe. Agricultores ocuparam estradas contra um possível acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul. Taxistas têm feito operações-tartaruga (ou “escargot”, como dizem os franceses) nas grandes cidades, contra uma redução da tarifa pelo transporte de enfermos.
O governo tentou cooptar deputados moderados de esquerda, sobretudo do Partido Socialista, para evitar a censura.
Barnier foi o mais efêmero primeiro-ministro da Quinta República, nome dado ao sistema político francês instaurado em 1958. Nele, apelidado de “semipresidencialismo” por alguns cientistas políticos, o chefe de governo é o primeiro-ministro, mas na prática o presidente, chefe de Estado, detém muitas prerrogativas.
A crise política francesa começou em junho. Diante do mau resultado do partido do governo, Juntos pela República, nas eleições para o Parlamento Europeu, Emmanuel Macron dissolveu a Assembleia Nacional e convocou eleições legislativas.
Sua esperança era formar uma nova e robusta maioria, aproveitando a divisão da esquerda e o temor de uma vitória da ultradireita. O tiro saiu pela culatra: os partidos de esquerda montaram uma coalizão de ocasião e conquistaram um terço da Assembleia, enquanto o Juntos perdeu mais de 70 cadeiras.
Qualquer que seja o novo governo, a crise deve perdurar, pois o Parlamento continuará rachado em três blocos mais ou menos equivalentes: esquerda, centro-direita e ultradireita.
Uma nova eleição legislativa, que poderia fazer surgir uma maioria clara, não pode ocorrer antes de junho de 2025, pois a Constituição veda duas dissoluções da Assembleia Nacional em menos de um ano.
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