Quando o prêmio Jabuti, em São Paulo, anunciou o romance “Salvar o Fogo”, do escritor Itamar Viera Junior, como vencedor, logo mandei mensagem para o autor, via celular, ao saber de sua ausência na cerimônia.
Esta semana outra boa notícia acolheu o premiado escritor. Por telefone, direto de Brasília, o presidente Lula disse a ele que estava regularizando, através de decretos, 15 territórios quilombolas, entre os quais, o de Lençóis, na Bahia, local que serviu de cenário para outra premiadíssima obra do autor —o romance “Torto Arado”.
A boa nova não atinge apenas o escritor que todos conhecemos e respeitamos. A assinatura do presidente mostra a sensibilidade do poder público para questões que tanto afligem a população negra do país, em especial a quilombola, secularmente marginalizada e oprimida.
Quem leu “Salvar o Fogo” (Todavia), de Itamar, sabe que a ligação do presidente pernambucano ao escritor baiano é uma homenagem que extrapola fronteiras. É gesto que nos toca pela simbologia e pelo olhar —e ambos demarcam o território de pertencimento, proteção e reparação aos afrobrasileiros de modo geral e, em particular, à população dos quilombos e seus remanescentes.
“Salvar o Fogo” é um livro de perguntas, do tipo: “Como está a minha mãe?”. Sem dúvidas, a história do povo negro ainda é uma história cheia de dúvidas e indagação.
É o caso dos territórios quilombolas. Para a memória nacional, quilombo é algo que pertence ainda aos livros didáticos, onde é visto de forma marginal, como “lugar de negros fugidos”, por exemplo.
Os livros de Itamar têm sido uma inspiração. Nos ajudam a desviar o olhar sudestino para o Norte e Nordeste brasileiros —que, juntos, enriquecem a nação. Sua obra, com concisão de linguagem, prosódia própria que mostra a riqueza regional, a mesma que no passado, forjou grandes escritores para esse Brasil.
Por isso o telefonema do presidente Lula para Itamar reforça a ideia de não estarmos só “salvando” o fogo, mas a dignidade, em si, do povo quilombola. O presidente podia ter feito qualquer outra coisa, mas escolheu o escritor nordestino para dar a grande notícia sobre a titulação dos territórios, o que remete a um aspecto positivo.
O ato não é aleatório. Vieira, geógrafo profissional, sempre se envolveu, pela escrita ou pisando na terra, nas lutas do “povo do terreiro”, caso do Quilombo Iuna, local de inspiração do seu famoso romance.
Eu tenho visitado alguns quilombos mineiros, como Capoeirão, com 300 anos de existência, e Morro Santo Antônio, terra de Maria Gregória Ventura, Dona Tita, centenária matriarca ainda lúcida e feliz.
Distantes do centro urbano, fora do alcance do ódio racial, se organizam enquanto comunidade e reforçam sua ancestralidade negra, combatendo a histórica opressão sofrida, herança brutal do regime escravista.
Fez bem Vieira em celebrar e agradecer. Sendo o Brasil demarcado por comunidades quilombolas, o decreto presidencial acende uma luz de esperança diante de um país embaçado pela dor e o racismo.
Reconhecer o gesto, na tentativa de reparação histórica, também faz parte da luta. Valeu Zumbi e Dandara!
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.
Deixe um comentário