Em um Uruguai que acaba de assistir a eleições nas quais o pêndulo do poder mudou, os líderes do Mercosul se reúnem nestas quinta (5) e sexta (6) sob expectativa cautelosa de enfim finalizar a negociação do acordo de livre-comércio com a União Europeia (UE).
O objetivo de avançar no mercado comum entre América do Sul e Europa, travado outrora pela ação negacionista de Jair Bolsonaro e hoje desafiado pelo lobby agrícola europeu, é um dos raros consensos expressos em um bloco que passa por mudanças e sofre pressão.
De Brasília, diz-se que a última rodada de negociações feita na semana passada marcou avanços importantes. Diplomatas sul-americanos se dizem otimistas, mas são comedidos. O presidente Lula (PT) reiteradamente disse que o objetivo é avançar no acordo ainda neste ano.
Os olhos estão voltados para a possibilidade de ida da líder da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen, a Montevidéu. Sua presença representaria um avanço certo rumo à assinatura. Mas a agenda da alemã, que está livre, ainda é uma incógnita. À agência de notícias Reuters um interlocutor da UE afirmou que uma passagem aérea já teria sido comprada por precaução.
Sob o manto ideológico de Javier Milei, a Argentina assumirá agora a presidência rotativa do bloco. É um período curto, de apenas seis meses, mas que concede ao país-membro mais influência na escolha da pauta e mais destaque simbólico.
O ultraliberal tem travado a agenda social e de direitos humanos do bloco sul-americano costurado há mais de 30 anos. Interlocutores próximos à política externa de Milei relataram em reserva à reportagem que a agenda da presidência argentina terá três eixos.
1) Maior flexibilização do bloco para acordos de livre-comércio, quiçá por fora do Mercosul, o espinhoso tema que há pelo menos dez anos gera mal-estar; 2) Criação de uma agência contra o terrorismo e o crime organizado, bandeira da Casa Rosada para a segurança pública; 3) Fortalecimento da chamada cláusula democrática do Mercosul, que prevê o que compõe uma democracia em suas nações-membros.
O primeiro ponto faz brilhar os olhos de Luis Lacalle Pou, o presidente do Uruguai que pleiteou abertura para acordos em busca de um mercado comum com a China e viu forte oposição do Brasil.
Mas esta é a última cúpula do centro-direitista, e o aceno de Milei, alguém com quem Lacalle teve relação pragmática mas demonstra fortes discordâncias, não deve ter respaldo de Montevidéu.
O futuro presidente do Uruguai, Yamandú Orsi, da centro-esquerdista Frente Ampla, eleito em novembro e que será empossado em março, vem sinalizando que para ele os acordos de livre-comércio bilaterais estão démodé. Como a reportagem adiantou, ele pretende frear a negociação com a China e cultivar apenas acordos dentro do bloco.
A vitória de Donald Trump, ídolo de Milei, nos Estados Unidos deu gás ao discurso do argentino de alinhamento total a Washington. A ponto de ele anunciar –sem um respaldo público de sua contraparte– que pretende negociar um acordo de livre-comércio com os EUA.
Para fazê-lo, teria de ter apoio dos demais países do bloco (o que não deve ocorrer). Se insistir, teria de sair do bloco (o que teria de ser aprovado pelo Congresso argentino, no qual a oposição ainda tem cacife).
Em falas recentes, Javier Milei tem dito que não pretende abandonar blocos e acordos dos quais a Argentina faz parte, mas que marcará suas discordâncias. Foi o que ocorreu no G20, selado no imagético com a imagem do azedo cumprimento entre ele e o presidente Lula, e deve ser o que ocorrerá no Mercosul e no Acordo de Paris.
Com agenda negacionista, Milei recentemente esvaziou a Conferência do Clima em Bakú. A Comissão Europeia tem reiterado que ser parte do Acordo e cumprir as promessas para atingir suas metas é uma pedra angular da negociação de livre-comércio com o Mercosul.
Mesmo que haja formalização do fim da negociação técnica e assinatura de algum acordo com a UE, o caminho ainda será longo. Envolve a revisão técnica e a votação do documento no Parlamento europeu, nos parlamentos de cada país-membro da UE e nos Legislativos dos sul-americanos.
Milei e Lula não têm relação, reservando às suas equipes diplomáticas a tarefa de seguir com os laços bilaterais. O argentino irá a Montevidéu após ignorar a última cúpula do bloco em Assunção, quando preferiu ir ao Brasil para um evento político conservador e afagar o aliado Bolsonaro. À época Lula disse que era ele, Milei, quem saia perdendo.
A cúpula também será um dos espaços de maior destaque do novo chanceler argentino, Gerardo Werthein, figura próxima a Milei e a sua irmã, Karina, que assumiu o ministério após a ex-ministra Diana Mondino ser forçada a renunciar. Ela tinha boa relação com o Brasil.
Como a reportagem detalhou, Milei tem tentado enfraquecer institutos ligados à agenda social do Mercosul, em especial o IPPDH (Instituto de Políticas Públicas e Direitos Humanos), e quer tirar sua sede de Buenos Aires. O Brasil se opõe e espera que a chegada de Yamandú Orsi, pupilo de José “Pepe” Mujica e próximo a Lula, a quem visitou na semana passada em Brasília, ajude a fazer frente aos argentinos.
Além do desafeto Lula, Javier Milei também dividirá Montevidéu com o presidente colombiano Gustavo Petro. A Colômbia é um dos estados associados no Mercosul, e o líder esquerdista, crítico frequente de Milei (e vice-versa) e próximo a Lula está no Uruguai.
Nas mesas de debate do bloco, dividirá o espaço com o boliviano Luis Arce, a quem já acusou de tramar um autogolpe. É a primeira cúpula da qual a Bolívia participa como membro do Mercosul, ainda que não tenha poder de voto, o que só lhe será concedido se em quatro anos aderir às normas do bloco.
No hall de chefes de Estado, também estará na capital uruguaia o presidente José Raúl Mulino, do Panamá, país que se tornará Estado associado do bloco. A nação será a primeira da América Central a fazê-lo e, segundo interlocutores, pode atuar como um hub de conexão com outras partes, como os EUA.
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