O primeiro relato de uma viajante feminina data de 381 d.C., quando Egéria começou sua peregrinação pela Europa em direção a Jerusalém. A viagem, que em 2024 dura poucas horas de avião, levou anos.
Pouco se sabe sobre Egéria: sabemos que ela tinha algum poder e influência, uma vez que pôde se dar ao luxo de fazer a travessia, e que foi acompanhada por homens do clero durante todo o percurso.
Seu diário de viagem foi recuperado séculos depois, em 1884, após ser encontrado em um mosteiro beneditino. É considerado um importante documento histórico, que dá pistas sobre as diferenças na liturgia cristã de Jerusalém e da Europa ocidental num tempo em que a religião ainda estava se estabelecendo.
Mais de mil anos depois, é a vez de outra viajante, a nobre inglesa Hester Lucy Stanhope, chegar a Jerusalém. Viajando no início do século 19, de cabelo raspado, turbante e trajes masculinos, Hester representava “uma extraordinária subversão dos hábitos ocidentais”. Em suas perambulações, tornou-se conhecida como a “rainha Hester” em Palmira, cidade localizada em uma área que hoje pertence à Síria.
As histórias dessas personagens históricas, pouco conhecidas do público brasileiro, são contadas no livro “Mulheres Viajantes”, de Sónia Serrano, recém-lançado pela Tinta-da-China.
Serrano, que é portuguesa, afirma que começou a se interessar pelo tema em 2010, quando montava em Lisboa uma exposição da obra fotográfica da suíça Annemarie Schwarzenbach —a artista foi de carro de Genebra até Cabul, no Afeganistão, em 1939.
“Essa jovem suíça, morta aos 34 anos em plena Segunda Guerra Mundial, notoriamente desconhecida, tinha vindo a adquirir uma popularidade marginal e quase secreta no domínio da literatura de viagens”, escreve Serrano, que se descreve como uma “investigadora na área de literatura de viagem”, em seu preâmbulo à edição brasileira.
Na época, a portuguesa já acompanhava os relatos de grandes travessias, mas não tinha um interesse particular pelas viajantes femininas históricas —em parte por nem sequer ter ouvido os seus nomes.
“Mas como parte da exposição, fomos pesquisar o quão comum seria para uma mulher, nessa primeira metade do século 20, viajar sozinha ou até simplesmente viajar”, diz Serrano. “Então pus-me a investigar e pronto, encontrei um sem-número de mulheres viajantes como ela, que eu não conhecia.”
A curiosidade a levou a escrever o livro, publicado em Portugal pela primeira vez em 2014. Na obra, Serrano não apenas se debruça sobre as histórias particulares dessas personagens, como também discorre sobre os desafios e especificidades de ser uma mulher que viaja.
Um dos capítulos trata, por exemplo, de segurança. A autora diz se impressionar com o fato de que alguns perigos relatados séculos atrás permanecem no caminho das mulheres viajantes.
“Eu acho que ainda hoje há certa perplexidade ao se ver uma mulher viajar sozinha, parece que há ousadia em fazer isso porque acham que continua a ser uma atividade perigosa. E não deveria ser, não é?”, diz a escritora.
Ela relembra o caso das argentinas Maria José Coni, 22, e Marina Menegazzo, 21, mortas no Equador em 2016 enquanto realizavam um mochilão pela América do Sul.
“Falou-se muito do fato de elas terem ido viajar sozinhas, de como é que elas tinham ido para aqueles lugares. É horrível, é indecente, e coloca o peso todo na vítima”, diz Serrano. “Quando acontece alguma coisa com o homem, nunca vi essa fala de ‘mas ele estava viajando sozinho’.”
A edição brasileira do “Mulheres Viajantes” traz ainda a história da velejadora Tamara Klink, que aos 24 anos cruzou o Atlântico sozinha. Aos 27, tornou-se a primeira mulher a passar sozinha pela “invernagem” de três meses no Ártico.
“Eu acho que ela é muito interessante. E tão jovem, não é? Já com uma vida de viajante tão intensa”, diz Serrano.
Um dos pontos mais curiosos das mulheres viajantes de Serrano é que elas não se encaixam necessariamente no rótulo de “mulheres à frente de seu tempo”. Muitas são, justamente, membros de classes privilegiadas, às vezes até aristocratas —o que as permitia viajar—, e não tinham posições feministas ou progressistas.
A inglesa Gertrude Bell, por exemplo, foi uma figura proeminente do movimento antissufragista. Mesmo Lady Hester Stanhope, a “rainha de Palmira” que desafiava os costumes da época com o cabelo raspado e montando a cavalos “como um homem” —isto é, com uma perna de cada lado da sela— ficou conhecida por nutrir profundo desdém por outras mulheres, que considerava fúteis.
“Tem o mais elevado desprezo pelo seu sexo, pelo menos naquela parte em que este se entretém com nada mais que visitas, capas e gorros e todos esses objetos frívolos”, escreveu um companheiro de viagem sobre ela em 1810.
“Quando comecei a investigar, pensei ‘elas são todas aventureiras’, achava que elas teriam todas mais ou menos as mesmas características, e não têm, obviamente. São pessoas individuais, com seus anseios, seus desejos, seus medos, seus preconceitos,” conclui Serrano.
O lançamento da edição brasileira acontece nesta quinta-feira (13), em São Paulo, na Livraria da Tarde, com a presença das escritoras Gaía Passarelli e Paula Carvalho.
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