“Há tempos são os jovens que adoecem […]”, o verso de Renato Russo, revela uma percepção sobre a sociedade brasileira da época, o agravamento de questões de saúde mental. Décadas depois, esse “grito” continua a ecoar no Brasil, onde crianças, especialmente das periferias, enfrentam um cenário desolador.
Dados da OMS revelam que 14% das crianças e adolescentes no mundo têm algum transtorno mental. No Brasil, o problema é agravado pela desigualdade: entre 2011 e 2022, o suicídio cresceu 6% e as autolesões, 29%, na faixa etária de 10 a 24 anos.
O impacto é ainda maior nos lares periféricos, onde 63% são chefiados por mulheres pretas e pardas, que enfrentam desigualdade maior no mercado de trabalho, com uma taxa de desemprego de 13%. Quando conseguem subverter essa lógica, trabalham em empregos precários e sem rede de apoio, os filhos mais velhos acabam por ser responsáveis pelos cuidados dos irmãos menores.
A falta de estrutura e políticas públicas que atendam as periferias também agravam questões de saúde mental.
Em São Paulo, por exemplo, há apenas 33 CAPs Infantojuvenis para atender regiões periféricas densamente povoadas, como Pirituba, que, com seus 167 mil habitantes, possui demanda comparável a um município. Famílias enfrentam filas longas e falta de informação sobre os serviços disponíveis, que desestimulam o início ou a continuidade de possíveis tratamentos.
Além disso, o estigma em torno da saúde mental dificulta o diagnóstico precoce. Segundo o Instituto Ame Sua Mente, muitas famílias abandonam tratamentos devido ao preconceito.
Essa barreira, somada às urgências de sobrevivência, afasta crianças em sofrimento de apoio psicológico. Sem mencionar, o impacto da pandemia de Covid-19 que segundo a Unicef, mais de 70% das crianças de baixa renda no Brasil relatam aumento de tristeza e ansiedade.
Nesse verdadeiro iceberg das desigualdades, sem intervenções efetivas, o resultado do acúmulo de vulnerabilidades e violências é, infelizmente, o afastamento de crianças e adolescentes do convívio familiar.
A partir da atuação do Conselho Tutelar, muitas acabam sendo direcionadas às Saicas (Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes), conhecidos como abrigos, enquanto as famílias recebem acompanhamento até que possam retomar os cuidados.
Estamos a cada dia mais nos aproximando desse iceberg, sem olhar para a base. Enfrentar essa crise exige um pacto social. Ampliar e fortalecer os CAPs, criar políticas públicas inclusivas e fomentar iniciativas comunitárias são passos indispensáveis.
Governos, setor privado e terceiro setor precisam atuar juntos, com atenção para os desafios das famílias das periferias. Afinal as consequências do descaso social que começa na infância se estendem ao longo da vida. Crianças que não recebem apoio psicológico adequado têm maiores chances de abandonar a escola, se envolver em atividades de risco e enfrentar problemas de saúde mental na vida adulta.
A questão não pode ser ignorada. O que queremos para as crianças das periferias brasileiras? Mais do que evitar o naufrágio, garantir uma infância digna e justa para as crianças, para que de fato construir a perspectiva de dias melhores.
O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço “Políticas e Justiça” da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Rosane Chene foi “Dias Melhores”, de Jota Quest.
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