A cidade de Palermo foi cenário de uma das maiores obras-primas do cinema —o que é ao mesmo tempo uma glória e uma maldição. As cenas que fecham a trilogia “O Poderoso Chefão”, de Francis Ford Coppola, se passam no Teatro Massimo, joia do centro histórico da capital da Sicília.
A montagem frenética alterna cenas da ópera “Cavalleria Rusticana”, ambientada na plácida zona rural da ilha, em contraste com vários assassinatos sangrentos que reconfiguram a cúpula da Cosa Nostra, a máfia siciliana.
Na visita guiada ao Teatro Massimo, aprendemos que se trata a maior casa de ópera da Itália em área construída, superando o famoso Scala de Milão, e a terceira da Europa, atrás apenas das óperas de Viena e Paris. Em setembro, estava em cartaz uma montagem de “Turandot”, de Giacomo Puccini, e durante a visita era possível ouvir um tenor ensaiando a famosa ária “Nessun Dorma”.
A sequência final de “O Poderoso Chefão 3” foi filmada na portentosa escadaria que dá acesso à porta principal do teatro. As poucas cenas passadas no belíssimo interior, que estava em reforma durante a rodagem do filme, foram feitas no camarote real.
Da mesma forma que a figura do monte Etna se impõe sobre as cidades do leste da ilha, a sombra da máfia se projeta sobre Palermo desde que o viajante aterrissa na cidade. O aeroporto se chama Falcone e Borsellino, nome de dois juízes que se notabilizaram no combate ao crime organizado nos anos 1980 e 1990. Eles acabaram assassinados, mas a Cosa Nostra nunca mais foi a mesma depois da atuação dos dois.
Os palermitanos acham injusta a associação da cidade com a máfia. Preferem que sua cidade seja reconhecida como aquela que enfrentou e, de certa forma, venceu os mafiosos —a ponto de imortalizar os mártires da guerra com o nome do aeroporto. Têm razão, como veremos mais adiante.
Palermo carrega duas cidades em uma só, ao mesmo tempo medieval e moderna. As duas literalmente se sobrepõem, e um passeio por ambas pode começar no largo de Quatro Cantos, onde se cruzam as duas ruas principais da cidade, Maquena e o Corso Vittorio Emanuele.
As fachadas não são retas e formam um ângulo de 45 graus em relação à esquina. Quem se coloca no centro do largo e olha para cima vê o céu emoldurado por um círculo. A geometria encantou o diretor alemão Wim Wenders, em seu filme “Palermo Shooting”.
Andando pelo Corso Vittorio Emanuele é possível admirar algumas das joias da arquitetura árabe-normanda que a Unesco considera patrimônio mundial da humanidade. Bem perto do largo de Quatro Cantos está a singela igreja de São Cataldo, aperitivo para a impressionante catedral onde se chega pela mesma rua, em menos de dez minutos.
Assim como a de Córdoba, na Espanha, a catedral de Palermo foi uma mesquita durante o domínio árabe, e ainda é possível ver resquícios de versículos do Corão. Bem ao final do Corso Vittorio Emanuele se chega ao Palazzo Reale e à Capela Palatina, que resumem a riqueza e a mistura da arquitetura árabe-normanda.
As duas ruas principais do centro histórico são retas que cortam um emaranhado de ruas curvas nas quais vale a pena se perder. Há pizzarias e cantinas típicas, mas também restaurantes vegetarianos, bares descolados e cervejarias artesanais típicos de um lugar cosmopolita.
Na extremidade do centro histórico está o porto —com restaurantes e sorveterias que lembram o Puerto Madero portenho em miniatura— e o Palazzo Chiaromonte-Steri, onde funcionou a Inquisição siciliana. O prédio, que hoje pertence à universidade local, tem um pátio com acústica excelente para concertos e apresentações operísticas. Em setembro, estava em cartaz na cidade um Don Giovanni de Mozart com cantores jovens e encenação contemporânea.
A Palermo moderna, quase modernista, se sobrepõe à medieval e nasceu num período de prosperidade da região —belle epoque na virada entre os séculos 19 e 20. Foi um período em que a Sicilia feudal e rural deu mostras de que poderia se tornar um polo industrial.
Uma família simbolizou essa era de desenvolvimento e riqueza. Em três gerações, os Florio ergueram —e depois dilapidaram— um império que envolvia construção de navios, transporte de carga, empresa de correios e indústria de conservas enlatadas.
Além das avenidas largas e retas inspiradas em Paris que cortam a cidade medieval, esse auge deixou marcas arquitetônicas, sendo a principal delas o próprio Teatro Massimo. A generosidade dos herdeiros e a transferência do polo industrial para o norte depois da unificação italiana selaram a decadência —da família e da cidade.
Palermo recuperou seu orgulho recentemente, quando a sociedade se uniu para combater seu maior flagelo: o crime organizado.
Nos anos 1970 e 1980, assassinatos ocupavam as páginas dos jornais italianos, e correram o mundo nas fotografias que fizeram a fama de Leticia Battaglia. Era a guerra por poder entre duas máfias, a de Palermo e a da cidade vizinha, Corleone.
A polícia e os procuradores da cidade se aproveitaram da situação para fustigar o crime. Conseguiram um delator: o mafioso Tomaso Buscetta, extraditado do Brasil. Interrogado pelos procuradores, Buscetta desvendou a estrutura sofisticada e intrincada do crime organizado italiano, o que permitiu a prisão de mais de 400 mafiosos no que ficou conhecido como “maxiprocesso”.
Os procuradores Giovanni Falcone e Paolo Borsellino —aqueles que depois deram nome ao aeroporto da cidade— pagaram com a vida pela coragem de enfrentar os mafiosos, sabendo que se aproveitar da guerra entre os dois clãs os colocaria na linha de tiro.
A dupla também ganhou uma pintura em um mural que reúne vários expoentes do combate a máfia e influenciou as leis locais, que passaram a incluir artigos que permitiam processar e condenar redes criminosas intrincadas. Essas leis, inclusive, foram copiadas mundo a fora.
Sobretudo, a atuação de Falcone e Borsellino ajudou a fomentar na sociedade civil vários movimentos anti-máfia. Um deles é o Addiopizzo. Pizzo, na gíria siciliana, é a propina paga por um comerciante ao mafioso em troca de proteção. Depois de Falcone e Borsellino, alguns comerciantes decidiram simplesmente parar de pagar a infame quantia.
Quando circular por Palermo, preste atenção nos estabelecimentos que têm o adesivo do Addiopizzo. Privilegiando-os, você ajuda os palermitanos a combater a máfia —que obviamente ainda atua e ocupa seus nichos, embora com menor violência e intensidade.
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