Ouvir uma antropóloga feminista moçambicana sobre os protestos em seu país me levou ao Brasil de 2013: demandas populares legítimas reprimidas violentamente pelo Estado, sob o risco de serem capitalizadas por forças de oposição conservadoras.
As pessoas estão nas ruas denunciando irregularidades nas eleições, que mantiveram a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) no poder, ocupado por ela, sem alternância, há 50 anos, desde a independência de Portugal. Mas também por um descontentamento geral com o empobrecimento, a precarização dos serviços públicos, em especial a saúde, a baixa escolarização da população e a falta de emprego.
“Estamos a atravessar um dos momentos mais críticos que o país já viveu nos últimos 15 anos, talvez desde a da guerra civil [1977 a 1992]. E com um grande potencial de transformação e de reconfiguração política”, me disse a mulher que vive em Maputo e preferiu guardar anonimato.
“O cenário em Moçambique é complexo e não pode ser visto por binarismos simplistas, ou de uma lente polarizada. Há um sentimento anti-Frelimo, mas é preciso trazer nuances e aprofundar a compreensão sobre os desafios que vem há muito minando a consolidação da nossa democracia.”
Sem vinculações partidárias, ela ressaltou o momento delicado, de extrema tensão, fragmentação social e desconfiança em relação a pessoas que se coloquem publicamente sobre o que está acontecendo em Moçambique e também de muita pressão para que se demonstre apoio ao candidato da oposição —que declara apoio a Bolsonaro e Trump. “Neste cenário, mesmo esta entrevista que estou a dar me colocaria desprotegida.” Desde as eleições do último 6 de outubro, 50 pessoas foram assassinadas em protestos e jornalistas foram presos.
Sua trajetória nos ajuda a compreender muitas questões que Moçambique tem enfrentado nas últimas décadas. Feminista decolonial, ela trabalha há uma década em programas que buscam melhorias nas políticas públicas de educação, igualdade de gênero e direitos das mulheres.
Por estar em um contexto de privilégio em um país de muitas desigualdades, ela se dedica à redução das desigualdades. Busca valorizar paradigmas e sistemas de conhecimento de matrizes africanas que podem constituir formas democráticas que sirvam melhor ao país.
Defensora de direitos humanos, participou da revisão da lei de educação que ampliou o ensino gratuito de seis para nove anos. Também esteve em campanha contra a proibição de meninas e mulheres grávidas estudarem no período diurno, e, em um movimento de debate público sobre o comprimento das saias das meninas, foi uma das que defendeu que as roupas não eram motivo para serem assediadas por professores. “Foi uma luta não só pelo acesso à educação para as meninas, mas também contra a estrutura patriarcal muito presente nas instituições públicas”, afirmou.
Apesar da preocupação com o cenário incerto, a violência crescente, a polarização incentivada também pelas redes sociais, compartilha seu otimismo com o aumento da conscientização política, que pode levar a um aprofundamento democrático.
Ela tem participado de rodas de conversas com mulheres de diferentes setores para incentivar que participem ativamente deste momento, tão definidor do futuro. As mulheres podem criar o novo ciclo da democracia de Moçambique. Futuro em que poderão falar o que quiserem, revelando o próprio nome.
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