O diplomata Dmitri Peskov, 57, é a voz do presidente russo Vladimir Putin para seu próprio país e para o mundo.
Nas estruturas do Kremlin desde 2000, quando Putin assumiu seu primeiro mandato presidencial, ele foi autorizado a expressar a posição do líder russo sobre todas as questões a partir de 2004, quando se tornou o primeiro vice-secretário de imprensa do Kremlin.
Desde então, nunca mais saiu do lado de Putin, relacionando-se com ele diariamente nestes 20 anos e integrando seu círculo mais próximo. Em 2008, virou o seu porta-voz. É ele quem, por exemplo, responde em nome de Putin aos EUA e a outras potências em momentos de maior tensão.
Com a guerra contra a Ucrânia, Peskov e seus familiares receberam diretamente sanções dos EUA, da União Europeia, da Austrália e do Canadá.
Graduado em história oriental, ele serviu como diplomata na embaixada russa em Ancara, na Turquia, antes de se integrar ao Kremlin.
Peskov recebeu a Folha em seu gabinete em Moscou na semana passada, em uma rara longa e exclusiva entrevista à imprensa internacional.
Durante 1 hora e 15 minutos, discorreu sobre a possibilidade de a Rússia usar armas nucleares contra outras potências, as expectativas em relação à futura presidência de Donald Trump nos EUA, as razões invocadas por seu país para a guerra contra a Ucrânia —e também sobre o Brasil, país que diz ser amado pela Rússia.
Afirmou que há “sinais” de que o mundo está à beira da Terceira Guerra Mundial e criticou a “posição irresponsável” das potências ocidentais.
Sustentou que a Rússia vive em uma democracia em que apenas “quem viola a lei vai preso” e revelou que o Kremlin não usará “óculos cor-de-rosa” em relação a Trump, que impôs 56 sanções ao país em seu primeiro mandato como presidente dos EUA.
Questionado sobre os soldados russos mortos na guerra, que chama de heróis, afirmou: “Agora, na Rússia, o nível de apoio às decisões do presidente é sem precedentes. Pode acreditar que no mundo inteiro há pouquíssimos presidentes que têm um apoio comparável ao que tem o presidente Putin. E isso responde da forma mais correta à sua pergunta.”
TERCEIRA GUERRA MUNDIAL
Os EUA e o Reino Unido autorizaram o uso de suas armas pela Ucrânia contra o território da Rússia. O país, em resposta, alterou a sua doutrina nuclear e apresentou novos mísseis que foram usados contra a Ucrânia. O presidente Putin disse, em discurso à nação, que os EUA, agarrados à sua hegemonia, estão empurrando o mundo para um conflito global. Como os EUA não vão desistir da sua hegemonia, ele é inexorável? A Terceira Guerra Mundial já começou?
Graças a Deus, ainda não. Por enquanto, a Terceira Guerra Mundial não começou. Mas tem todos os sinais de que isso pode acontecer.
A alteração na doutrina nuclear da Federação da Rússia não ocorreu como uma resposta direta à autorização dos países ocidentais para o uso de seus mísseis. As condições estavam mudando muito antes disso.
A infraestrutura militar da Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte, aliança militar que reúne países ocidentais] estava avançando para a fronteira da Federação da Rússia [com a incorporação, ao longo dos anos, de diversos países do leste europeu que podem receber armas].
A revolta na Ucrânia [em 2014, que resultou na queda do governo então eleito] foi organizada pelos EUA. Depois dele, os mesmos países ocidentais começaram a transformar a Ucrânia no centro de luta contra a Rússia, lotando o país de armas.
Fecharam os olhos à chegada dos líderes pró-nazistas ao poder. E, o principal: fecharam os olhos ao fato de o regime de Kiev [capital ucraniana] começar uma guerra civil, matando os russos que moram na Ucrânia.
A partir daí, houve uma escalada rápida de tensões.
[Antes da guerra] O presidente Putin sugeriu várias vezes [às outras potências] sentarmos à mesa para discutirmos as preocupações da Rússia [com a situação de Kiev]. Washington e as capitais europeias recusaram as negociações.
É por isso que [a Rússia] começou o que chamamos de operação militar especial contra o regime de Kiev. Foi a última medida depois que todas as possibilidades de resolução pacífica foram rejeitadas.
Washington, Paris, Berlim, Londres e muitos outros países europeus se uniram então direta ou indiretamente ao confronto, enviando [à Ucrânia] os armamentos que atiram contra os nossos soldados e contra os russos que vivem nas regiões fronteiriças. A operação se transformou, de fato, em uma guerra com a participação direta do Ocidente coletivo [como a Rússia se refere a nações alinhadas com os EUA].
Os sistemas de armamento se tornaram cada vez mais complexos. Os mísseis [dos EUA e Reino Unido usados pela Ucrânia para atingir o território russo] só podem ser lançados por especialistas ingleses, franceses e americanos. As potências nucleares se uniram contra nós.
Por todo esse conjunto, precisamos alterar a nossa doutrina nuclear.
ARMAS NUCLEARES
Mas a Rússia pensa de fato que o uso de armas nucleares pode ser necessário? Ou se trata apenas de uma retórica?
A Federação da Rússia tem uma posição muito responsável em relação a essa questão. E está convencida de que as armas nucleares nunca devem ser usadas por ninguém. Por isso fazemos o possível para que nunca sejam usadas.
Estão usando a Ucrânia como um instrumento para a opressão total da Rússia. Eles não têm pena dos ucranianos que estão morrendo. O mais importante é derrotar a Rússia
Mas a situação está mudando drasticamente. E por isso foram feitas alterações no nosso conceito que diz que, se uma potência nuclear ajudar outro país a atacar o nosso território, isso pode ser razão para o uso das armas nucleares.
De maneira tática, com menor poder explosivo e ataque limitado, ou estratégica, de forma mais ampla?Não tem muita diferença. É claro que a principal razão para o uso das armas nucleares —e não podemos nos esquecer de que todos os países do mundo que possuem esses armamentos horríveis têm esse conceito nuclear— é a ameaça à existência do Estado Russo.
Mas, pela nova doutrina, uma “ameaça crítica à soberania ou à integridade territorial” da Rússia justificaria o uso das armas. Ela já estaria ocorrendo?
A Federação da Rússia tem todo o potencial necessário para defender a sua soberania. O fato de seguirmos com a operação militar especial [na Ucrânia] é indicação de que vamos garantir plenamente todos os nossos interesses e a nossa segurança. E nós vamos fazer isso, custe o que custar.
Para nós, a preferência, a prioridade, é sempre fazer isso por meios diplomáticos e políticos. Mas, se neste momento não houver essa possibilidade, nós continuaremos [adotando] os métodos de guerra.
Que país venceria, e sobreviveria, a uma guerra nuclear?
O mais importante no armamento nuclear é o seu potencial de contenção. Se não houvesse a paridade nuclear [entre países, evitando que um ataque o outro por temor de represália destrutiva], as grandes potências já estariam em estado de guerra há muito tempo.
O que nós vemos neste momento é uma posição irresponsável dos países nucleares ocidentais, com ações que de fato colocam a paridade nuclear em questão. Nós pedimos que recuem.
Eles estão usando a Ucrânia como um instrumento para a opressão total da Rússia. Os ucranianos, como tal, não têm importância. Eles não têm pena dos ucranianos que estão morrendo. O mais importante é derrotar a Rússia, como eles mesmos disseram.
A Rússia pode usar uma arma nuclear, mas também pode ser atingida por elas.
Eu já falei bastante sobre armas nucleares. A responsabilidade dos representantes dos países que têm armas nucleares é falar menos sobre elas.
Os EUA foram avisados 30 minutos antes do uso do novo míssil pela Rússia. Esse diálogo é constante?
O mecanismo de notificação sobre lançamentos de balísticos não tem nada a ver com o diálogo diplomático. São os contatos pela linha dos sistemas militares e semimilitares, digamos assim.
Nós temos o Centro Nacional de Diminuição de Ameaça Nuclear e os EUA têm um centro similar. Só nós e os norte-americanos possuímos esses sistemas, e eles trabalham no modo automático, para avisar uns aos outros sobre esses lançamentos. Na área de segurança, praticamente não restou nada [desses tratados], por culpa dos EUA [que se retiraram de diversos deles].
TRUMP
Vocês, afinal, acreditam que o presidente Trump vai de fato tentar acabar com a guerra em 24 horas, como disse? E, se tentar, ele vai conseguir? Porque nem sempre querer é poder.
Durante a sua campanha, o presidente eleito falava de paz. Os representantes da administração atual [Biden] só falam em guerra. Aos nossos olhos, portanto, Trump se difere deles de forma vantajosa.
Mas, depois que os países ocidentais se uniram diretamente a esse conflito, é impossível resolvê-lo em um dia.
De qualquer maneira, uma grande quantidade de países —e, em primeiro lugar, a Rússia— quer uma solução pacífica.
Depois de 20 de janeiro [dia da posse de Trump] veremos quais serão as ações da nova administração de Washington.
O senhor já disse que não tem muita ilusão.
Não se pode mudar drasticamente o rumo de um grande navio em um segundo, em um momento. Há uma inércia muito grande. Ainda mais em um país como os EUA, que tem, como dizem, um “deep state” [estado paralelo que controla de fato a nação de acordo com seus próprios interesses].
A administração atual [de Biden] deixará como herança leis e decisões que dificultam a situação. Mas a equipe de Trump terá muitas pessoas ambiciosas, com bastante energia. Vamos ver o quanto vão poder corrigir esse rumo.
Seria possível um cessar-fogo imediato?
O presidente Putin já listou as condições para um cessar-fogo. Estão disponíveis e todos as conhecem muito bem. Apenas um cessar-fogo para dar pausa às tropas do regime de Kiev é inadmissível.
A suposta proximidade de Trump com a Rússia é muito explorada, mas quando presidente ele se retirou de tratados nucleares, por exemplo. Não foi, portanto, totalmente alinhado a vocês.
Durante a primeira presidência de Trump, foram introduzidas 56 sanções dos EUA contra a Rússia. Houve muitos contrastes, com palavras de amizade e ações concretas de caráter hostil ao nosso país. Por isso nós não vamos colocar agora óculos cor-de-rosa.
CHINA
Trump sinaliza com a possibilidade de normalização das relações dos EUA com a Rússia, mas também com uma postura muito agressiva em relação à China, com quem vocês têm hoje uma parceria que definem como “sem precedentes”. Como se equilibrarão nessa disputa?
Nossas relações bilaterais com os EUA estão em seu ponto histórico mais baixo, próximo de zero. E nossas relações bilaterais com a República Popular da China estão historicamente em seu nível mais elevado. Nosso presidente Putin já falou várias vezes que temos a vontade política, muito firme, de seguir desenvolvendo as relações com a China em todas as áreas possíveis. E vemos recíproca de nossos amigos chineses.
Não se pode mudar drasticamente o rumo de um grande navio em um segundo, ainda mais em um país como os EUA, que tem um ‘deep state’. Mas a equipe de Trump terá pessoas ambiciosas, com bastante energia. Vamos ver o quanto vão poder corrigir esse rumo [da guerra]
Trump não tentará afastar a Rússia um pouco da China?
A Rússia e a China são dois países grandes, fortes e soberanos. Colocam suas prioridades de forma independente. Não gostam de negociar. Gostam de relações bilaterais sólidas, consecutivas, estáveis e mutuamente benéficas.
GUERRA
A Rússia justifica a guerra na Ucrânia afirmando que cidadãos russos estavam sendo oprimidos na região de Donbass, na Ucrânia, e que a Otan se aproximava perigosamente de suas fronteiras. No entanto, a Otan se expande para o leste europeu desde 1999. O que mudou em 2022?
O fator [Volodimir] ZelenskI [referindo-se à maior aproximação do presidente da Ucrânia, eleito em 2019, com o Ocidente] e o trabalho dos norte-americanos para transformar a Ucrânia em uma base de ações contra o nosso país.
Quando começou a representar uma ameaça real à segurança nacional da Rússia, o presidente Putin passou a falar ativamente sobre isso.
Em 2007, o presidente Putin afirmou em célebre discurso em Munique que o uso da força só poderia ser considerado legítimo se a decisão fosse sancionada pela ONU. Isso não vale também para a Rússia?
Se trata da defesa de nossa segurança e da necessidade de defesa de parte da população do país que está sendo assassinada só por serem russos [referindo-se a moradores da região do Donbass]. É claro que o país deve agir.
Nesse caso não precisa da sanção da ONU? Não é uma contradição?
Eu acho que não precisamos agora entrar em detalhes sobre uma discussão jurídica complicada. Mas muitos países falam sobre a integridade territorial da Ucrânia, referindo-se à Carta da ONU. No caso de Kosovo [que declarou a independência da Sérvia em 2008], por exemplo, muitos desses mesmos países se referem a outro item [da Carta], sobre o direito da nação à autoidentificação. As duas coisas são corretas e aplicáveis. Por que damos esse direito aos cidadãos de Kosovo e privamos os russos que continuavam morando em território da Ucrânia desse mesmo direito?
A guerra completou mil dias. O Ocidente acreditou que quebraria a Rússia com suas sanções, o que não ocorreu. Por outro lado, a Rússia não atingiu seus objetivos. Vocês não subestimaram a reação dos EUA e seus aliados, e não superestimaram suas próprias forças?
Se olharmos para o estado real das coisas, a dinâmica está favorável à Rússia nas frentes de combate. E nós estamos decididos a seguir com a operação militar até alcançarmos todos os nossos objetivos e metas.
Todos os países falam em soberania. Mas nem todos podem ter soberania de verdade. A Rússia é um dos poucos países que pretende permanecer soberano. Não vamos suportar intervenção em nossos assuntos internos, nem tentativas de romper os nossos interesses internacionais
Quantos soldados russos já morreram até agora no conflito? E como o senhor se sente ao saber que a decisão pela guerra leva pessoas à morte?
A informação sobre perdas militares só pode ser dada pelo Ministério da Defesa, é a regra. Quanto aos heróis que faleceram, eu vou responder assim: agora, na Rússia, o nível de apoio ao presidente por suas decisões é sem precedentes. Há pouquíssimos presidentes no mundo que têm um apoio que pode ser comparado ao do presidente Putin. E isso responde da forma mais correta à sua pergunta.
Qual é a verdade sobre a participação de soldados da Coreia do Norte nos combates na Ucrânia?
Tentamos não discutir temas concretos relacionados a ações militares. Mas a República Democrática Popular da Coreia é nossa vizinha. E queremos desenvolver relações com nossos amigos da Coreia em todas as áreas. Temos acordos e certas obrigações mútuas com nossos amigos. E vamos cumpri-las.
Depois do fim da União Soviética, a Rússia, inclusive sob o comando de Putin, se aproximou do Ocidente. O que deu errado? Por que a Otan não aceitou a Rússia?
O Ocidente tenta manter o mundo unipolar sob regras estabelecidas por um único país, os EUA, a favor dos seus próprios interesses. Essas regras mudam constantemente, na medida em que os interesses desse mesmo país mudam.
Nós somos a favor de um mundo multipolar em que a ordem mundial seja baseada no direito internacional. Essa é a diferença de nossas abordagens.
Todos os países falam em soberania. Mas nem todos podem ter soberania de verdade. A Rússia é um dos poucos países que pretende permanecer soberano. Não vamos suportar intervenção em nossos assuntos internos, nem tentativas de romper os nossos interesses internacionais. Nem ameaças reais, militares, em relação ao nosso país.
IMPÉRIO RUSSO
Vocês dizem que há um cerco ao seu país. Mas no Ocidente o entendimento é o de que a Rússia quer refazer o seu Império.
É [um entendimento] incorreto na essência. É claro que a Rússia é a sucessora de um país muito grande, a União Soviética, parte integrante e inalienável da nossa história.
Sabemos muito bem dos problemas da nossa história. E temos também orgulho de suas páginas gloriosas. Mas o tempo passa. E agora, no território da ex-União Soviética, coexistem Estados independentes que são nossos amigos, aliados, parceiros. Respeitamos suas soberanias e desenvolvemos relações em novos fundamentos e processos de integração. Nada disso está ligado a neoimperialismo. Só quem não sabe o que acontece de verdade pode falar uma coisa dessas.
O apoio ao presidente Putin é sem precedentes. É difícil imaginar o surgimento de algum outro líder, neste momento, que apresente um programa contrário ao do presidente Putin
DEMOCRACIA NA RÚSSIA
O presidente Putin foi eleito pela primeira vez em 1999, mas, com alterações na Constituição da Rússia, poderá ficar no poder até 2036. Por isso ele é chamado de “czar”, e há o entendimento de que o país é uma autocracia, onde as pessoas não podem se manifestar livremente e opositores são processados e presos.
Essa era uma acusação mais comum ao nosso presidente na década passada. Fomos criticados porque, por exemplo, fechamos algumas organizações públicas. Mas depois foi reconhecido que os países ocidentais forneciam dinheiro a elas, e a políticos, para que influenciassem em nossa política interna.
Nós temos um sistema político complexo, multipartidário, e muitas vezes ocorrem discussões bastante tensas sobre o desenvolvimento do país.
Mas o apoio ao presidente Putin é sem precedentes. É difícil imaginar o surgimento de algum outro líder, neste momento, que apresente um programa contrário ao do presidente Putin. O povo se uniu em torno de seu presidente e, quando chega a hora [das eleições], vota nele.
Os mecanismos democráticos funcionam plenamente. A ausência de concorrência política real está mais relacionada ao período importante pelo qual passamos agora.
E não ao fato de que há um bloqueio e opositores presos?
Quem viola a lei vai preso.
Mas é bom a mesma pessoa ocupar o poder por tanto tempo?
É bom quando o povo tem um presidente em quem ele votou. Isso é que é bom. Não importa quantas vezes as pessoas votam por ele. Ainda mais quando esse presidente cumpre suas obrigações da melhor forma possível, fazendo com que a cada ano de seu governo elas vivam melhor.
Se olharmos para o caminho de nosso país nos últimos 25 anos —e nem sempre Putin esteve no poder [referindo-se ao período entre 2008 e 2012, em que o presidente foi Dmitri Medvedev e ele, primeiro-ministro]— veremos que foi realmente um caminho gigantesco. A Rússia é hoje um país completamente diferente [de quando Putin assumiu o poder pela primeira vez]. É um país maravilhoso.
Deixe um comentário