O presidente da Coreia do Sul, Yoon Suk Yeol, foi derrotado na sua tentativa de amordaçar a oposição com um decreto de lei marcial que pegou de surpresa o país asiático nesta terça (3), jogando umas das nações mais prósperas do planeta em uma grave crise.
Cerca de duas horas após o surpreendente anúncio em rede de TV e a mobilização do Exército, que suspendeu liberdades civis e invadiu o prédio da Assembleia Nacional, deputados de oposição comandaram uma reação legislativa.
Com uma votação unânime de 190 parlamentares, nenhum deles do governo, a oposição derrubou o decreto, conforme permite a Constituição do país.
Passadas mais de três horas horas, Yoon cedeu e suspendeu a medida às 4h30 (16h30 em Brasília). Ele disse que o Comando da Lei Marcial recuou. Logo depois, reuniu-se com seu gabinete, oficializando a medida.
Os militares já haviam deixado Parlamento, onde haviam protagonizado embates com assessores munidos de extintores de incêndio no fim da noite de terça e invadido salas quebrando janelas.
Uma multidão estimada em milhares de pessoas enfrentou as temperaturas em de 0º Celsius para protestar contra Yoon e pedir a prisão do presidente. A pressão veio de dentro e de fora: tanto o seu partido quanto os Estados Unidos, principal aliado de Seul, pediram que ele acatasse a lei.
A crise teve um desfecho expresso, mas fica incerto o futuro da relação de Yoon, com a oposição e a sociedade. A Confederação dos Sindicatos da Coreia, mais poderosa entidade de trabalhadores do país, convocou uma greve geral para pedir a renúncia do presidente.
Mesmo seus aliados buscaram se distanciar das ações do líder. Logo após a decretação da lei marcial, o presidente de seu partido, Han Dong-hoon, disse não concordar com a medida. Depois da votação no Parlamento, o líder da sigla na Casa, Choo Kyung-ho, disse que desconhecia o plano de Yoon e que só não votou a moção porque foi impedido de entrar no plenário por soldados.
O presidente alegou em seu pronunciamento que a oposição estava travando o funcionamento do país, devido a seu bloqueio da peça orçamentária do ano que vem e dos pedidos de impeachment de procuradores nomeados pelo governo.
Além disso, de forma mais fantasiosa, disse que os oposicionistas estavam trabalhando em favor da Coreia do Norte, com quem Seul vive um estado de guerra congelado desde o armistício que encerrou três anos de combates e dividiu a península coreana em 1953.
“Eu declaro lei marcial para proteger a livre República da Coreia da ameaça das forças comunistas da Coreia do Norte, para erradicar as desprezíveis forças antiestatais pró-Coreia do Norte que estão pilhando a liberdade e a felicidade do nosso povo, e para proteger a ordem constitucional”, disse Yoon.
O decreto de lei marcial, previsto na lei coreana em caso de guerra, sublevação interna ou catástrofe natural, passou poderes executivos às Forças Armadas sob Yoon.
O general Park An-su, chefe do Estado-Maior do Exército, assumiu o Comando de Lei Marcial e divulgou regras draconianas: proibição de atividade legislativa, banimento de liberdades civis, supressão da liberdade de imprensa, prisão sem mandato de transgressores.
Tal medida não era evocada no país asiático desde o golpe de Estado de 1979, um dos vários de sua história, e durante repressão a protestos no ano seguinte. As cores de intervenção militar ficaram mais fortes com a movimentação de blindados e helicópteros em torno do Congresso, e com a invasão das tropas.
A situação começou a se acalmar com a votação, que ocorreu à 1h de quarta (13h de terça em Brasília). O presidente da Casa, Woo Won-sik, disse que os militares deveriam cumprir a ordem legislativa. Enquanto isso, a manifestação do lado de fora só fazia crescer.
A decisão não ocorreu imediatamente, com o general Park dizendo que só levantaria o decreto de lei marcial por ordem de Yoon. O suspense adentrou a madrugada, até ele
Enquanto isso, a comunidade internacional começou a reagir. A Casa Branca se disse preocupada com a situação e em contato com o governo sul-coreano. O Departamento de Estado declarou que esperava o cumprimento da ordem do Legislativo.
O Kremlin, aliado da ditadura norte-coreana, também expressou preocupação, assim como a ONU e países europeus.
A crise foi o ápice de um conflito que se desenha desde abril, quando a oposição liderada por Lee Jae-myung venceu eleições legislativas. Seu Partido Democrático soma 170 dos 192 assentos contrários ao governo, que tem 108 deputados liderados pelo Partido do Poder do Povo de Yoon.
A mais recente querela, sobre orçamento e pedidos de impeachment, é considerada por adversários de Yoon uma cortina de fumaça para tirar foco de escândalos envolvendo aliados e até mesmo sua mulher, criticada por aceitar uma bolsa de luxo e acusada de manipular o mercado de ações.
O extremo buscado presidente causou espanto, de todo modo. Lei marcial geralmente é evocada em tempos de guerra, como na Ucrânia. Nela, poderes discricionários são passados para as Forças Armadas, com ou sem controle civil delas —no Brasil não há tal instrumento na Constituição.
Nos últimos meses, a aprovação de Yoon havia caído aos piores níveis desde que assumiu o governo, em 2022. Na semana passada, o instituto Gallup Korea apontou que apenas 19% dos sul-coreanos apoiam o líder.
Seu rival Lee, a quem Yoon derrotou marginalmente na eleição presidencial passada, disse à agência Yonhap que o país seria “governado por tanques, blindados de transporte de pessoal e soldados com armas e facas” se a medida prevalecesse.
“A economia da República da Coreia vai colapsar de forma irreversível”, disse, ao convocar a população a ir às ruas em Seul. A Bolsa da capital poderá não abrir nesta quarta (4), e há o won, moeda local, sofreu queda ante o dólar.
Lee tentou organizar uma primeira reunião no Parlamento à noite, mas foi impedido por soldados. Logo, com a presença de vários deputados, conseguiu comandar a votação apesar da presença militar.
O incidente é mais um na longa lista de crises no país. A política sul-coreana sempre contrastou com sua pujança econômica, sendo um campo minado de disputas. A Coreia do Sul foi governada por uma ditadura militar e líderes autocráticos de sua fundação em 1948 até 1987, quando começou a transição para a democracia liberal que ganhou corpo pleno apenas em 2002.
No Parlamento, tal vitalidade ganhou ares às vezes farsescos, com as famosas brigas físicas entre deputados, mas nada indicava uma regressão ao tempo de golpes militares.
A crise ocorre no momento de grave tensão com a Coreia do Norte, cujo ditador Kim Jong-un recrudesceu a retórica militarista e até explodiu estradas que ligavam os dois países. Kim assinou um polêmico acordo de defesa mútua com a Rússia de Vladimir Putin e aparentemente enviou soldados para lutar na Ucrânia.
Yoon é um aliado próximo de Washington, vital para a estratégia americana de tentar conter a China no teatro da Ásia-Pacífico. No ano passado, colocou os sul-coreanos no comitê que define o uso de armas nucleares em caso de um ataque do Norte, atraindo críticas da Rússia e da China, aliadas de Kim.
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