Saindo de Santiago do Chile rumo oeste em direção ao Pacífico chega-se, em pouco mais de uma hora de carro, a Isla Negra, praia onde se debruça a casa do poeta Pablo Neruda (1904-1973), ícone cultural do país. Deste atual museu se avistam as rochas escuras lambidas pelas ondas; e, equilibrando-se sobre elas, poderá estar também um cozinheiro, o chef Rodolfo Guzmán, remexendo-lhes os desvãos à cata de algas e mariscos.
Como Neruda fez com a literatura, Guzmán, 46, é a expressão mais conhecida de uma arte culinária que busca sabores e ingredientes locais, estudando culturas autóctones e mirando o uso sustentável dos recursos alimentares às vezes impensáveis.
Numa manhã de 2015 eu o flagrei, por exemplo, recolhendo nestas rochas uma alga de ficção, chamada kollof ou cochayuyo. A enorme raiz é jurássica na aparência; o grosso talo parece uma almofada de couro de um palmo de lado; seus “tentáculos” lembram os cabelos do alienígena do filme “Predador” —mas podem ter até três metros.
Ela entra na composição de diferentes pratos de seu restaurante, o Boragó. Aberto em 2006 em Santiago, ele demorou a deslanchar: seu trabalho de pesquisa era difícil de ser assimilado num panorama gastronômico tedioso e conservador.
Em 2013, após anos de casa vazia, ele colocou o restaurante à venda. Por sorte o comprador desistiu na última hora –pois neste ano, para sua surpresa, ele foi incluído na primeira lista latino-americana do prêmio World’s 50 Best Restaurants, no nono posto. Ante o inesperado reconhecimento internacional, as reservas explodiram.
Desde então ele tem estado entre os dez melhores no ranking regional, e desde 2015, entre os 50 da lista mundial, fora outros prêmios (além do fato de que nunca mais seu salão ficou vazio).
Para entender os méritos do Boragó vale conhecer menu-degustação –o atual tem 14 pequenos passos, sem exageros de quantidade, como constatei este ano em seu menu de outono. É uma sucessão de impressões gustativas do país inteiro, do Atacama à Patagônia, dos mares frios ao ar rarefeito da montanha. Tudo em apresentações rústicas, assimétricas, prometendo até na aparência seus sabores de raiz.
Tome-se a alga que, pela aparência extraterrestre, poderia figurar na fase surrealista do poeta Neruda, que foi vizinho daquele ingrediente insuspeitado. Num prato, a lagosta de Juan Fernandez é envelopada no cochayuyo e assim cozida, como num papillote; a imensa alga é depois cortada à mesa, liberando os aromas do crustáceo e seus temperos.
Em outra receita, um caranguejo fermenta nu caldo das suas raízes (é a única alga com raízes); o caldo é então servido quente, com delicadas empanadas de luga (outra alga), ou frio, infusionado com flores de magnólia e despejado sobre a carne do crustáceo fermentado, extratos marinhos e coco silvestre da montanha.
O menu tem mais ingredientes e sabores surpreendentes. Um exemplo de simplicidade é o crudo de ostras e camarões com extrato de algas: vem com salada de folhas de rocha e molho de espirulina (uma microalga) azul. Já a maçã assada é uma sinfonia maior de ingredientes: vem recheada de pequeninas maçãs silvestres da Patagônia e creme de kefir, acompanhada de tartar de nozes macias e caviar chileno e coberta com raiz de ruibarbo.
O cordeiro da Terra do Fogo é assado ao ar livre por mais de dez horas, acompanhado de “verduras e flores à Van Gogh”, emulando os girassóis do pintor, com calêndulas assadas e salada de espinafre, abobrinha e aspargos brancos sobre purê de cenoura e couve-flor.
Nas sobremesas volta a disforme alga de Isla Negra: o minimagnum tem a forma de cogumelo, com o chapéu feito de loyo (fungo gigante do sul do país) e o talo de cochayuyo assado, banhado em chocolate e recheado com maqui (fruta silvestre).
Também todos os vinhos e bebidas são nacionais, numa refeição que mostra o Chile de um outro jeito, instigante e original.
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