Há uma parcela da população da Argentina para a qual os êxitos econômicos de Javier Milei, do controle da inflação celebrado em publicações no exterior aos elogios públicos feitos por organismos financeiros internacionais, ainda não chegaram.
“A bem da verdade, nós, argentinos, estamos acostumados a apanhar, e nos adaptamos a cada situação”, diz o ferreiro José Maria, 47, servido de mate e bolacha maisena e com a família ao lado. Ele apoia Milei —uma mudança era preciso. A dúvida dessa parcela é quando que essas promessas de melhora econômica do ultraliberal as atingirão.
Na casa simples da matriarca Marcelina Yedro, 68, sogra de José Maria, o entorno mostra que governos à esquerda e à direita não deram conta de mitigar a desigualdade social. É Villa Azul, uma das principais favelas do “conurbano”, a zona metropolitana de Buenos Aires.
A região de chão de terra, ruas estreitas, casas de tapumes e falta de acesso a saneamento e água potável é historicamente negligenciada, mas ficou conhecida pelos argentinos na televisão durante a pandemia. Ali teria ocorrido um dos primeiros surtos de Covid no país.
Villa Azul é como a versão argentina da foto que em 2004 eternizou a diferença entre a pobre Paraisópolis ao lado da luxuosa Morumbi em São Paulo. Uma estreita rua separa os municípios de Avellaneda —com espaços arborizados, casas antigas e bem conservadas ao lado de novos conjuntos residenciais populares erguidos pela gestão pública— de Quilmes, o município que abriga Villa Azul.
“Separa o bairro bonito do bairro feio”, dizem os moradores.
Nascida em Misiones, na fronteira com o Rio Grande do Sul, e com a mãe natural de Porto Alegre, Marcelina vive há mais de 40 anos ali com seus 11 filhos, um deles morto em um assalto. O tráfico de drogas e a violência dele decorrente estão presentes em Villa Azul. Ela está acostumada a privações, e explica que elas agora são mais frequentes.
“Meu filho [o que vive em um puxadinho acima da casa] agora me diz: ‘Mami, como a sra. chega ao fim do mês? No dia 20 já estou pedindo dinheiro emprestado'”, relata. “Há muitas vezes que nos privamos. O frango é mais barato que a carne. O gás foi de 1.000 a 10 mil pesos.”
Aposentada do trabalho doméstico e agora à torcida para que o marido também se aposente, Marcelina diz que não há mais trabalho para os jovens, pensando em seus netos. “Não se escuta mais que fazem obras, que constroem escolas, prédios, hospitais, está tudo parado.”
É fato. Milei interrompeu obras públicas. O setor de construção teve um recuo de quase 30 pontos percentuais nas suas atividades de janeiro a outubro se comparado com o mesmo período do ano anterior.
Do lado do governo, presidente e ministros dizem que a economia atingiu o piso para enfim começar a crescer, um gráfico em V, ou em U, que para a população mais comum diz pouco.
Em um país com dívida pública de 158% do PIB (dados do quarto trimestre de 2023), Milei cortou a despesa pública em 30%. O líder afirma que o salário logo se estabilizará e que a atração de investimento internacional abrirá novas vagas de trabalho.
Barbara Couto, diretora do Instituto do Conurbano da Universidade Nacional de General Sarmiento, com 30 anos de estudos na área, diz que o encolhimento do Estado neste governo atingiu uma população que já estava em crise. Não houve colchão social para o ajuste.
“Isso deteriorou a situação anterior, de um governo que fracassou em governar a macroeconomia, mas que tinha algumas medidas sociais; um Estado que era frágil na regulação econômica, mas muito presente na contenção dos problemas sociais”, diz à reportagem.
“O atual governo desmantelou essas capacidades do Estado, colocou todas as suas energias em liberar os preços do mercado, mas pisar nos salários.”
O poder de compra caiu. Consecutivamente, o consumo também. Houve retração de 20,4% no indicador em outubro em comparação com o mesmo mês do ano anterior. É a maior redução em dez anos, ainda que, diz a consultoria Scentia, responsável pelo dado, a base de comparação de 2023 seja em parte ilusória porque estava regada a ações eleitorais do governo peronista para controlar os preços.
(Volte à reportagem após a série narrativa de gráficos abaixo)
Há muito mais gente que brilhou os olhos com Milei, o economista de cabelos desgrenhados, discurso contra a “casta da política” e várias promessas de uma sonhada mudança. Como Margarita Barrientos, 63, uma das ativistas sociais mais conhecidas da Argentina.
Mãe de 12 e avó de 16, fundou há 28 anos com o marido o refeitório comunitário Los Piletones, um dos chamados “comedores”, em uma favela no bairro de Villa Soldati, em Buenos Aires. De 2.500 a 3.000 refeições são feitas ali diariamente.
Com o tempo, o projeto ganhou um espaço apenas para idosos, uma clínica odontológica gratuita e com trabalho voluntário, uma creche e um abrigo para mulheres e crianças vítimas de violência doméstica.
Há 25 anos ela recebe verba do Banco Mundial para comprar os alimentos que viabilizam as refeições, tarefa que agora está mais difícil. “Antes, com 1 milhão de pesos (R$ 6.000), comprava um caminhão cheio, agora, é impossível.”
A ajuda do Estado sempre se fez necessária de maneira complementar. Agora, as coisas mudaram. “Esse governo fechou muitas portas de desenvolvimento social, e não há comunicação; antes me ajudavam a transportar os remédios de doação que tenho, as cadeiras de roda; agora, nada. E não gosto da forma com o que esse presidente se dirige às pessoas, é um mau trato, é muito mal-educado.”
Milei assumiu seu governo com um discurso rígido contra os comedores sociais. Disse que boa parte desses refeitórios trabalhava em esquemas de corrupção. É algo que alguns dos próprios argentinos que vivem próximos às unidades relatam. Mas também relatam a importância do serviço de assistência social.
Margarita Barrientos, por exemplo, já recebeu inúmeros prêmios, guardados em um armário de madeira e vidro no mesmo simples salão onde as mesas de madeira recebem pessoas pobres para as refeições. “Por um futuro com amor”, diz a pintura ao lado das láureas.
Mas, nestes 28 anos, ela afirma à reportagem que “este é o pior momento”. “É, sim, o mais difícil. Me dá muito desânimo.”
Para Milei, porém, este é o melhor momento. “Estamos organizando a macro[economia], colocamos um cadeado no equilíbrio fiscal e jogamos a chave fora. Isso vai trazer investimentos de todo tipo, porque o dinheiro se comporta como um ser vivo, busca as melhores condições para se desenvolver”, disse o presidente na semana passada.
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