Com diferentes graus de acidez ou dulçor, a persona do bad boy tem sido celebrada no meio gastronômico nas últimas décadas, como mostram personalidades reais (Anthony Bourdain entre elas) e fictícias, como Carmen “Carmy” Berzatto, de “O Urso”. Pois é sob este viés que o “rei dos cozinheiros e cozinheiro dos reis” Marie-Antoine Carême é retratado em série da Apple TV+ que estreou no final de abril.
Figura ímpar na gastronomia da primeira metade do século 19, o francês representado na série “Carême – O Rebelde da Culinária” foi abandonado pelo pai aos 11 anos, encontrando abrigo e trabalho na cozinha de uma taberna em Paris. Aos 17, já era o doceiro de maior destaque de uma renomada confeitaria nas arcadas do Palais Royal, onde criava extraordinárias “pièces montées” —centros de mesa decorativos feitos com fios de açúcar, massa e marzipã.
Carême considerava a arquitetura “a primeira entre as artes” e a confeitaria “seu principal ramo”. Inspirado por desenhos de projetos arquitetônicos clássicos que consultava no Gabinete de Gravuras da Biblioteca Nacional de Paris, elaborava peças comestíveis no formato de templos gregos, fontes e pirâmides, capazes de transformar bufês em um verdadeiros palcos.
Seu talento para as artes gastro-decorativas rendeu-lhe uma contratação na residência de Charles Talleyrand (interpretado na série por Jérémie Renier), então Ministro das Relações Exteriores de Napoleão, que compreendia como ninguém o potencial diplomático de uma refeição preparada com excelência.
A perenidade de seu patrão no poder, ocupando altos postos em todas as administrações desde a corte de Luís 16 até a monarquia constitucional de Luís Filipe de Orleans, fez com que Carême alcançasse um nível de celebridade sem precedentes em sua profissão.
Foi chef do czar russo Alexandre 1º tanto em Paris quanto em São Petersburgo, de onde importou o serviço à russa. Também cozinhou para o príncipe regente do Reino Unido George 4º (para quem criou o menu de um jantar com 120 pratos) e para a família Rothschild. Foi o responsável por confeitar o bolo do segundo casamento de Napoleão Bonaparte.
Baseada no livro “Carême, Cozinheiro dos Reis”, do historiador e dramaturgo britânico Ian Kelly (que é também co-criador do projeto), a série em oito episódios retrata a ascensão de Carême ao estrelato culinário.
As primeiras décadas do século 19, em que o cozinheiro passou sua vida adulta, foram um período no qual a gastronomia —assim como a moda— estabeleceu-se como expressão máxima do bom gosto francês. Publicações destinadas a instruir a burguesia ascendente sobre este novo campo, com vocabulário e código de comportamento próprios, pipocavam na capital do estilo.
Da pena de Carême, saíram cinco livros de receitas (em nove volumes), em que inicia um fundamental processo de catalogação, codificação e sistematização da alta cozinha, que só seria revisado e atualizado cem anos mais tarde, por Auguste Escoffier.
O jornalista Grimod de La Reynière, considerado o primeiro crítico gastronômico da história moderna, lançava seu “Almanaque dos Gourmands” e o “Manual dos Anfitriões”, e o jurista Brillat-Savarin, sua célebre “Fisiologia do Gosto”.
Todos esses personagens históricos estão representados na série, assim como as criações atribuídas a Carême, retratadas pelo cineasta Martin Bourboulon (de “Eiffel”) em close-ups tão luxuriosos que, por vezes, se assemelham aos da série “Chef’s Table”.
Contando com uma brigada real de cozinha e outra de confeitaria para auxiliar na produção dos quitutes cenográficos, o drama histórico é repleto de “momentos de revelação” em que o cozinheiro teria concebido ou aperfeiçoado receitas que entraram para a história, como as de vol-au-vent, croque-en-bouche, pithiviers e baba au rhum.
Mas, apesar dos muitos instantes de iluminação, um clima sombrio permeia todos os episódios por meio de uma trama de espionagem política, chantagens e intrigas palacianas que muitas vezes tem o próprio chef como pivô. No livro que inspirou a série, Ian Kelly cita rumores de que Carême teria sido um espião durante sua carreira internacional, mas diz que “não há provas, nos parcos registros de São Petersburgo, Moscou e Paris, de que essas suspeitas se justificassem”.
“Ainda que boatos sejam abundantes, não acredito que haja fontes que cravem que Carême tenha sido espião”, diz Joana Monteleone, historiadora especialista em alimentação e pesquisadora da USP. Segundo ela, porém, é possível, entender um pouco sobre a espionagem no século 19 a partir dessas informações.
“Trabalhadores domésticos e cozinheiros-espiões são um clássico das cortes da época, pois podiam ver e ouvir muitas coisas sem que ninguém notasse suas presenças”, diz Monteleone.
Esse dark side, também presente na atitude rebelde do protagonista da série, vivido por Benjamin Voisin, é expresso de forma inventiva na escolha para o figurino de Antonin: um dólmã invariavelmente aberto, à moda das jaquetas de couro dos Ramones.
Junto com seu cabelo espetado, brinco e costeletas, completa o visual feito sob medida para encantar o público jovem entusiasta do estereótipo de chefs tatuados, ressaltando o aspecto marcadamente sexy da obra.
O co-criador e roteirista Davide Serino define a abordagem da série como “sempre disposta a trair a precisão histórica a fim de alcançar uma verdade emocional mais profunda”.
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