Forças rebeldes depuseram Bashar al-Assad, o ditador da Síria, neste domingo (8), encerrando uma longa dinastia autoritária que remontava a 1971. É um dos momentos mais importantes da história recente do país. Inaugura-se uma nova etapa, bastante imprevisível, com a reconfiguração das forças políticas.
A revolta tinha começado em março de 2011, quando um grupo de jovens pichou uma mensagem que dizia “chegou a sua vez, doutor”. O vocativo era uma alusão ao fato de que Assad havia estudado medicina. Eles foram presos e torturados pelas forças de segurança, o que motivou os protestos.
Causou furor, em especial, a morte de Hamza al-Khatib, 13. Fotografias do seu corpo mutilado circularam pelo país. Sírios foram às ruas cantar o lema da Primavera Árabe, que tinha acabado de derrubar os ditadores do Egito e da Tunísia: “O povo/ deseja /a queda do regime!”.
Treze anos depois daquele dia, a vez de Assad de fato chegou. Segundo informações da chancelaria da Rússia, um de seus maiores aliados internacionais, ele deixou o país e abandonou o poder, algo que era impensável há dez dias. Manifestantes voltaram às ruas. Desta vez, para celebrar o fim do regime e a possibilidade de um futuro democrático.
Pessimistas expressaram nos últimos dias o receio de que a queda de Assad piore ainda mais a situação na Síria. Mas, neste momento, é bom ouvir os próprios sírios, muitos dos quais foram às ruas comemorar o fim da ditadura. Querem viver, pela primeira vez em gerações, um regime democrático.
Após mais de uma década de guerra civil, devemos aos sírios ao menos um pouco de esperança de que eles sejam capazes de reconstruir as suas instituições. Agora que se livraram da dinastia dos Assad, têm a oportunidade de recomeçar. A comunidade internacional lhes deve, também, o apoio nessa árdua tarefa.
Bashar al-Assad nasceu em 1965 em Damasco, em uma família conhecida e temida. Seu sobrenome era originalmente o apelido de um ancestral —quer dizer “leão”, em árabe. Seu pai tinha migrado de um pequeno vilarejo no oeste e, àquela altura, já galgava os degraus do poder.
Hafez foi um dos responsáveis pelo golpe militar de 1963, que levou o partido Baath ao poder. Em 1966, dobrou o golpe e retirou a cúpula tradicional da sigla. Em 1970, fez o que se chamou de “golpe corretivo”, eliminando seus rivais e se transformando em primeiro-ministro.
Foi por meio de Hafez que a minoria étnico-religiosa alauita —que representa cerca de 10% da população da Síria— se consolidou no governo. Esta é a religião da família Assad, e também de seu círculo mais íntimo. A maioria do país, no entanto, professa o islã de variedade sunita.
O ditador Hafez se coroou presidente em 1971, um cargo que manteve até a sua morte, em 2000. Seu mandato autoritário foi marcado pela centralização do poder, pelo culto à sua imagem de pai da nação e pela repressão violenta de toda dissidência, desarticulando os movimentos de oposição.
Ninguém esperava que Bashar, tido como alguém fraco e tímido, além de ter alguma dificuldade de dicção, chegasse ao poder. Foi só quando seu irmão mais velho, Bassel, morreu em um acidente de carro em 1994 que ele virou o herdeiro do poder. À época, ele estava estudando oftalmologia em Londres.
Assad voltou para a Síria e adquiriu alguma experiência —e logo precisou dela. Com a morte de seu pai em 2000, ele assumiu o controle do país, em guerra com Israel e ocupando o Líbano. Veio com a promessa de alguma abertura, mas logo a frustrou, dando continuidade ao autoritarismo.
Suas reformas econômicas, que a princípio animavam o mercado, aumentaram ainda mais a desigualdade, criando tensão. Nas ruas, Assad substituiu os retratos de seu pai —espalhados por todos os lugares— pelos seus, renovando o culto ao líder. Manteve um violento Estado de polícia.
O novo ditador teve dificuldade, no entanto, de exercer o mesmo grau de controle que seu pai Hafez tinha no país. Era um novo momento político, no final das contas, após a invasão americana do Iraque em 2003. Protestos forçaram a retirada síria do Líbano em 2005, em uma importante derrota.
Seu maior desafio foi a onda de protestos iniciada em 2011, da qual ele nunca se recuperou. As manifestações, que de início eram pacíficas, se transformaram em uma dura guerra civil. Potências regionais e globais entraram nesse embate, levando à devastação da infraestrutura do país.
Parecia, a princípio, que o ditador não resistiria por muito tempo. Em 2013, usou armas químicas contra sua própria população, apesar dos alertas dos Estados Unidos. Mas o apoio da Rússia, do Irã e da facção libanesa Hezbollah garantiram a sua permanência no poder até este ano.
O custo foi a morte de mais de meio milhão de pessoas —o número exato é desconhecido. Outros milhões fugiram do país. Assad também teve de abrir mão de regiões no norte, na fronteira com a Turquia, onde rebeldes conseguiram se instalar e criar semblantes de governos independentes.
Foi, em parte, a mudança das conjunturas políticas que levou à sua queda nestas semanas. A Rússia teve de se concentrar na Ucrânia, onde trava sua própria guerra. O Irã vive uma crise econômica. Já o Hezbollah sofreu perdas no seu confronto com Israel, incluindo a morte do líder, Nasrallah.
As forças rebeldes, lideradas pela HTS (Organização para a Libertação do Levante, na sigla em árabe), aproveitaram para avançar contra as principais cidades da Síria. Tomaram, de repente, os grandes centros urbanos de Aleppo e Hama e seguiram na direção de Homs e Damasco.
Para os sírios que lutaram por décadas contra a ditadura dos Assad, a deposição do ditador traz esperança. Circula no país o otimismo típico dos momentos de mudança. Por outro lado, há razões o suficiente para o ceticismo quanto aos próximos dias, meses e anos, em um país dividido.
A organização HTS, que chefiou agora a derrocada do ditador, esteve no passado associada à rede terrorista Al Qaeda. Não está claro se seu líder, Abu Mohammad al-Jolani, vai cumprir as promessas que tem feito em público de ter um governo moderado, pautado por valores internacionais.
Vale lembrar que o Talibã também afirmou, ao retornar ao poder no Afeganistão, que implementaria um regime mais aberto. Foi para americano ver. Cabul está mais uma vez sob um governo extremista que, por exemplo, impede as mulheres de estudar.
Tampouco se sabe se Jolani será capaz de costurar de volta um país esgarçado por tantos anos de guerra, onde facções armadas desconfiam umas das outras. A HTS terá trabalho em manter o país unificado. Pode ser que, com a família Assad, tenha ido embora a Síria como a conhecemos.
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