Quando o que viria a ser a guerra civil da Síria era ainda um movimento pacífico contra o ditador Bashar al-Assad, em 2011, Adel Bakkour manifestava sua revolta contra o regime nos muros de Aleppo, destruída por bombardeios cinco anos depois.
“Liberdade era a palavra que a gente mais pichava”, diz Bakkour, 31, formado em relações internacionais pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Meses antes, a prisão e tortura de adolescentes que haviam feito o mesmo em Daraa, no sul do país, desencadeara uma onda de protestos.
A espera de 13 anos pela queda da ditadura acabou no último domingo (8), quando forças rebeldes que se fortaleceram após a repressão tomaram Damasco. A conquista da capital foi o último capítulo de uma ofensiva relâmpago de duas semanas que culminou na fuga de Assad, agora asilado na Rússia.
Inimaginável até um mês atrás, a deposição do ditador deixou Bakkour e outros membros da comunidade síria no Brasil eufóricos. Ele conta, no entanto, que se manteve cético ao observar os últimos dias do que chama agora de Revolução Síria.
“Quem acompanhou durante todos esses anos sabe quantas vezes criamos expectativas e fomos frustrados”, afirma. “Depois de 13 anos de guerra, nós estamos traumatizados. Estávamos com medo de acreditar que Assad fosse cair.”
Pouco antes de a guerra eclodir na Síria, protestos na Tunísia iniciaram o que ficaria conhecido como Primavera Árabe —movimento por democracia em diferentes países do norte da África e do Oriente Médio.
Um dia, enquanto via imagens das manifestações no Egito pela TV, em Aleppo, Bakkour comentou com seu pai, Mohamad Abdo, como gostaria de que algo parecido acontecesse na Síria. “O nosso governo é muito mais assassino”, teria ouvido como resposta.
Membro do Partido Comunista Sírio na juventude, Mohamad foi preso e torturado na década de 1960, antes mesmo de Hafez, o pai de Assad, começar, na década seguinte, a dinastia que terminou na semana passada. Libertado, estudou na antiga União Soviética e voltou para a Síria, onde continuou envolvido em atividades políticas.
Bakkour se engajou até o conflito ficar ainda mais violento, em 2012. “A primeira coisa que eu pensei foi que eu não queria pegar em armas contra outro sírio”, conta. “Tenho amigos que foram para grupos armados e perderam a vida rapidamente.”
Naquele ano, ele veio para o Rio de Janeiro, onde se juntaria aos cerca de 4.000 sírios que conseguiram status de refugiado no Brasil de 2011 a 2023, segundo o Conare (Comitê Nacional para os Refugiados). Trata-se da segunda nacionalidade mais comum entre os que conseguem a proteção no país, atrás apenas dos venezuelanos. Em 2019, Bakkour se naturalizou brasileiro.
A farmacêutica Lama Srour, 33, deixou a Síria em 2022. A falta de emprego e de recursos básicos, como eletricidade e combustível, a levou a se mudar para São Paulo com o marido e os dois filhos. O terceiro nasceu no Brasil. Ela faz pós-graduação na USP e eventualmente cozinha comida síria para vender.
“Saímos da Síria porque sentimos que não era nosso país”, conta ela. Lama diz também que suas raízes eram tratadas com desprezo. “Eu era insultada e desrespeitada em instituições governamentais apenas por ser sunita”, afirma. Assad é muçulmano da corrente alauita, derivada dos xiitas, e priorizava seguidores de sua vertente religiosa na estrutura de poder.
Parte de seus familiares sentiu a brutalidade do regime, segundo ela. Ex-parlamentar, o tio de sua mãe foi preso e torturado, afirma Lama. Anos depois, foi detido novamente. O filho dele de 18 anos desapareceu e estaria morto. Outros parentes de Lama, um tio direto e um primo, também foram detidos. “São memórias ruins, mas descobrimos que nossas histórias são pequenas se comparadas às das pessoas nas prisões agora”, diz.
A queda de Assad a fez sentir um misto de alívio e apreensão. “Foi uma alegria indescritível, seguida de medo do que está por vir”, diz. “Nada pode ser pior que esse governo [que caiu]. Quero estar na Síria para celebrar com minha família e sentir que, finalmente, posso viver sem medo num país que é meu de verdade.”
Assim como Lama, Bakkour também fala em retornar a seu país natal —embora evite comentar o assunto com amigos brasileiros. Aqueles que já ouviram os planos do sírio lamentaram de antemão sua possível partida.
“Não sou a favor de um conflito armado, mas, contra esse ditador, tinha que ser. E eu escolhi não participar. Talvez agora seja meu momento de contribuir”, diz, sugerindo ter encontrado a liberdade que registrava nos muros de Aleppo aos 18 anos. “Hoje não me sinto mais refugiado. A única família síria refugiada atualmente é a do Assad. Nós somos todos livres.”
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