Na rua, ninguém morria. No máximo, joelho ralado, tampão do dedão arrancado. Quem queria ser polícia? Quem queria ser ladrão? Na memória da infância sobrevivida, geral preferia fugir e sair vivo do que caçar e terminar sem fôlego. Ainda assim, sempre tinha um. Sempre tem um.
Encurrala o ligeiro. Ele consegue deslizar pela parede e correr por debaixo de seus braços abertos. Enquanto observa para onde vai o outro, deixa três passarem livremente. Eles riem, ele fecha a cara. Pensa em ir na direção do mais lento. Parece emboscada. Ao se aproximar, percebe que todos vão em sua direção, atiçando seu instinto e fazendo com que tente agarrar qualquer um dos mil braços a desafiar sua visão. A tarefa não é fácil, mas é dele. Sempre ele, sempre um.
Quando finalmente consegue marcar o alvo, aponta o indicador, dobra o polegar, recua o do meio, anelar e mindinho para dentro da palma e grita: “Parado! Preso!”. Toca, paralisa e prende, mas não mata. Na rua, ninguém morria ainda.
Enquanto o imaginário se desenvolvia em contexto de guerra, inocência e perigo corriam um atrás do outro. A brincadeira acaba, o tempo passa e o assunto fica sério. Sai a fantasia, entra a realidade. Nasce o policial, padece o nem sempre ladrão. É complexo. Os papéis podem se confundir, e quem deveria proteger com maturidade, infantiliza a ameaça porvir.
Como já escrito nesta coluna, o pobre não deseja morrer nas mãos dos agentes de segurança. Ele quer segurança pública. Quer, em público, sentir que não terá os bens materiais roubados por assaltantes, o corpo violado por abusadores e a vida ceifada pelos terroristas de Estado que se escondem atrás do distintivo. Distintivo este que, atualmente, pouco distingue a farda que pratica o mal daquela que bem serve.
Quem promove a barbárie banaliza o horror a ponto de tratá-lo com inexorável indiferença. No âmbito político, parece virar discurso a traduzir tamanha frieza como algo justificável. Se acharem ruim e denunciarem, a máxima é invocada: “O raio que o parta”, “não tô nem aí”. Crianças morrem pelas balas de gente treinada e nada há de banal neste fato. Absolutamente nada.
Há quem chame de “erro emocional” suposta tentativa de homicídio. Acredita, o adulto, que está brincando de “Polícia e Ladrão”? Confunde-se a ponto de trocar as leis pelo “Parado! Preso” e jogar da ponte o outro? Das questões da mente, cuida a psicologia. Das do crime, as leis.
“Jesus no Mundo das Maravilhas”, documentário de 2007 dirigido por Newton Cannito, é retrato importante de uma realidade que perdura. Mostra o lado de quem mata e dos que ficam sem o morto. Revela o que há, em muito, por trás do uniforme: sujeitos que também sofrem, possuem seus medos e permitem ao poder subir à cabeça. Consequentemente, sem a devida condução de quem deveria lhes direcionar para a boa execução dos trabalhos, são instigados à violência que os encoleriza e leva à insubordinação.
Na rua, muita gente morre. No mínimo, mata-leão, corpo ralado no chão, outro arremessado ao rio, cento e onze tiros para fuzilar cinco futuros. Não são todos, sabe-se, mas sempre um. Sempre um a achar graça em, sendo adulto, fabular seu próprio “Polícia e Ladrão”. Não tem graça. Não é brincadeira. Nunca será.
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